O preconceito contra os ciganos
A discussão sobre o lugar da minoria étnica cigana no nosso país é das mais difíceis que podemos enfrentar como comunidade. As razões são evidentes: é a maior minoria étnica na Europa, com uma presença secular no nosso país, marcada por uma integração complicada. A discussão é tão complexa quanto necessária e a União Europeia tem vindo a desenvolver uma política especificamente para esse fim, com o propósito de melhorar a integração das comunidades ciganas nos Estados-Membros.
A discussão é particularmente difícil porque eivada por preconceitos na sua maioria provenientes de experiências pessoais, do ouvir dizer ou, o que é pior, da sabedoria popular ("estar com um olho no burro e o outro no cigano"). Tudo isto dificulta a entrada de elementos objetivos na discussão que devia existir na opinião pública. A esmagadora maioria dos interlocutores já entra na discussão com posições muito firmes e claras, em regra contra os ciganos. É de esperar. As más notícias correm mais depressa do que as boas, sobretudo numa época em que a comunicação social é composta por inúmeros tablóides que não fazem reportagens de fundo sobre experiências positivas da comunidade cigana, mas aprestam-se a noticiar tudo o que de mal de lá venha. Acresce que as nossas (nós, os não-ciganos) experiências com ciganos, aquelas de que nos lembramos, são em regra as más. Também aqui a razão é simples. Sendo em regra comunidades fechadas é difícil que tenhamos partilhado ou conhecido boas histórias, sejam ou não de integração, da comunidade cigana. E não estamos especialmente predipostos a ir procurar informação sobre elas (nota: claro que existem). O que sabemos, o que ouvimos dizer, o que transmitimos é que os ciganos são ladrões, perigosos, arruaceiros, que nos roubaram e por aí fora. Além de estas experiências pessoais, decantadas em provérbios populares, estar longe de ser objetiva e credível não nos preocupamos em saber se, a ser verdade que os ciganos são, generica e maioritariamente, tudo o que de mau deles dizem, quais são as causas e como se pode resolver o problema. Em relação aos ciganos não só há preconceito como um certo fatalismo: eles são maus, barulhentos, mal cheirosos, arruaceiros e por aí fora, mas, pior! não há nada a fazer. Sempre foi assim. Sempre será. Tudo o que sobre eles se diz é verdade.
Ao preconceito e ao fatalismo sobre os ciganos acresce a sua singularidade: aparentemente tudo o que se imputa de mau aos ciganos é especificamente deles característico. Não existem outros grupos ou mesmo cidadãos avulsos que incorram no mesmo tipo de condutas. Comparados com os ciganos, não existem pessoas briguentas, mal cheirosas, fraudulentas e por aí fora. São vítimas da sua singularidade. São fáceis de delimitar, um terreno sempre fértil para o preconceito.
Veja-se o caso do problema evidente da integração dos ciganos. Há pouquíssimos dados objetivos que demonstrem se é uma auto-exclusão ou uma exclusão provocada pela sociedade, desde logo porque a distinção é enganadora. A resposta provavelmente encontrar-se-á no meio, uma vez que a auto-exclusão que se encontre agora pode também ter origem em exclusões atuais e no passado que provocaram uma tradição defensiva de auto-exclusão. Mas a verdade é que não sei e como eu, creio que a maioria das pessoas não saberá, o que nos deve fazer ser prudentes antes de nos deixarmos levar por afirmações preconceituosas fáceis.
A dificuldade do tema "Ciganos" não nos pode servir de desculpa para o pronceito. Pelo contrário. Por mais ciganos que existam que tenham todas as características e comportamentos que acriticamente aceitamos por ouvir dizer ou por experiência pessoal eles devem ser tratados como quaisquer outros cidadãos. Para o bem e para o mal. A haver discriminação ela tem que ser positiva, no sentido de construir e executar políticas que resolvam os problemas específicos da comunidade cigana. Já quanto aos problemas provocados por membros das comunidades ciganas eles devem ser tratados como todos os problemas provocados por quaisquer outros cidadãos.
Termino a este respeito com um famoso Acórdão do Tribunal Constitucional, o Acórdão n.º 452/89, sobre a magna questão de saber se, da alteração de um regulamento da GNR de 1920 em que se nomeavam explicitamente os ciganos (aos quais se imputavam, por exemplo, na letra do regulamento, habituais atos de pilhagem), para um regulamento de 1985 em que se substituía "ciganos" por "nómadas" haveria violação do princípio da igualdade, por estar em causa uma categoria suspeita (no caso, a origem étnica). O Tribunal veio a declarar que não havia inconstitucionalidade, por entender que nem todos os nómadas são ciganos. Lendo o magnífico voto de vencido de Vital Moreira fica claro como é especialmente necessário nos casos de discriminações suspeitas, como são aquelas que recaiam sobre ciganos, que exista um fundamento objetivo incontroverso: por exemplo se se demonstrasse, para o problema do acórdão (vigilância policial), que os ciganos por serem ciganos cometem especialmente algum tipo de crimes que requeira essa vigilância específica.
Este acórdão pode bem servir-nos de guia para lançarmos um olhar crítico sobre as declarações de André Ventura ao jornal i. Aí afirmou o candidato do PSD à Câmara Municipal de Loures que os ciganos "vivem quase exclusivamente de subsídios do Estado [e acham] que estão acima das regras do Estado de direito". Para além da necessidade de demonstrar objetivamente que isto é verdade - para início de discussão - o mais importante aqui é o preconceito implícito, a tal singularidade a que me referi no início deste texto. Mesmo que os ciganos vivam quase exclusivamente de subsídios do Estado isto por si só não demonstra nada, apenas que são elegíveis para apoios sociais, o que, conhecendo-se o seu regime, nos deve levar a pensar nas condições de vida que têm e porque as têm. Se André Ventura conseguir demonstrar que os ciganos de Loures se colocaram propositadamente numa situação destinada a viver quase exclusivamente de apoios sociais, talvez seja bom enfrentarmos o problema de saber se devemos continuar a prestar esses apoios sociais ou se falhámos enquanto comunidade que não soube oferecer ou criar outras alternativas. Caso André Ventura não consiga demonstrar nada disto, o que fez foi apelar ao mais antigo preconceito contra ciganos, aquele de que nem o Tribunal Constitucional se conseguiu livrar. E isso é de lamentar e de repudiar.