Fake news e regulação: a Europa e os Estados Unidos de novo às avessas?
Acabou hoje em Paris a 13.ª reunião anual do Fórum de Governance da Internet. O tema deste ano não podia ser mais atual: "The Internet of trust". E aí se discutiu, em vários dos painéis, um dos tópicos mais quentes sobre governance da internet: fake news. A desinformação ou as notícias falsificadas, para ser mais literal na tradução, são isso mesmo, um problema de confiança e, sobretudo, da internet da confiança, onde as fake news são um cancro.
Luca Belli escreveu em 2016 uma obra muito interessante intitulada Da governance à regulação da Internet, em que demonstra como em muitos domínios já não estamos simplesmente num modelo de auto-coordenação em rede - governance - mas mesmo num modelo de regulação, leia-se de auto-regulação regulada.
Curiosamente dos três pilares tipicamente tratados pela governance da internet - redes físicas, protocolos e conteúdos - aquele que os autores mais dificuldade têm em considerar regulado é o pilar dos conteúdos.
Há uma razão simples para isto. Mesmo que não completamente correcto, há um entendimento generalizado de que redes físicas e protocolos são axiologicamente neutros, algo que é evidente não acontecer com os conteúdos. Ou seja, face a uma realidade completamente global como é a internet, teríamos dois pilares que podiam ser alvo de uma regulação transnacional, de certo modo pacífica (como parece ser demonstrado pela interconexão de redes físicas e pela gestão dos "root servers" e tudo o que eles implicam), mas seria muito difícil conseguir o mesmo quanto a conteúdos. Os conteúdos trazem consigo o contexto cultural em que são criados e disseminados.
Parece por isso que estamos condenados a não conseguir regular o pilar dos conteúdos mas meramente a coordenarmos algum tipo de políticas utilizadas nas várias jurisdições estatais. O argumento, diz-se, é essa contraposição insolúvel entre a ausência de fronteiras na internet e as diferentes culturas jurídicas espalhadas pelo mundo.
Recentemente ficou (mais) claro para a opinião pública um dos domínios onde esta contraposição é relevante. Não ainda as fake news mas a privacidade. Com a maioria das redes sociais a serem provenientes dos Estados Unidos, onde prevalece ainda um modelo muito menos protetor da privacidade do que na Europa, a entrada em vigor do famigerado RGPD (Regulamento Geral de Proteção de Dados) tornou aparente a colisão entre dois modelos, não apenas jurídicos mas culturais, de encarar a ponderação entre privacidade e demais interesses em presença na internet. O RGPD parece estar a ganhar, quando até o Estado origem da maioria das redes sociais aprova um lei materialmente semelhante ao RGPD.
Este choque entre Estados Unidos e Europa, verdadeiro choque cultural de que o direito é apenas a ponta da lança, pode estar em vias de se repetir noutra perspetiva de conteúdos da internet: as fake news.
A posição norte-americana é a este respeito de grande preferência preventiva pela liberdade de expressão face a outros interesses carentes de proteção, no que aliás não se distingue ainda muito da posição europeia (não obstante os poderes de controlo regulatório da Diretiva Comércio Eletrónico de 2000).
Intermediários e plataformas online não têm sido responsabilizadas por fake news, desde logo por se entender ser difícil decidir quando é que uma desinformação está a colocar em perigo outros interesses legalmente protegidos. Há casos quase consensuais, mesmo se difíceis, como as matérias com dignidade penal. Mas fora desses casos, a falta de consenso e a controvérsia têm impossibilitado qualquer avanço jurídico regulatório. Mesmo no domínio penal, Estados Unidos e Europa têm utilizado uma posição regulatória mínima, para alguns aliás indigna desse nome, uma vez que apenas atuam a posteriori para mitigar ou punir a desinformação mas sem conseguirem evitar os danos por ela causados.
Ora este estado de coisas começou a mudar no dia 1 de janeiro da 2018 com a entrada em vigor da Gesetz zur Verbesserung der Rechtsdurchsetzung in sozialen Netzwerken, Netzwerkdurchsetzungsgesetz para os amigos, e NetzDG para simplificar (que pode ser lida em inglês aqui e em português nesta obra).
Partindo de uma premissa muito simples - regular apenas o que já está tratado na lei penal como limite à liberdade de expresão - a NetzDG atribui responsabilidade preventiva às plataformas sociais pelos conteúdos que, sendo fake news, possam lesar outros (por configurarem um crime). Elas devem retirar no prazo de 24 horas ou 7 dias, consoante as circunstâncias, as notícias falsificadas, a desinformação.
Se este standard normativo vingar teremos na Alemanha um distanciamento em relação ao modelo norte-americano e mesmo singular no domínio europeu (o Parlamento Europeu encomendou um estudo ao CEPS - Centre for European Policy Studies e College of Europe, publicado em junho desde ano, onde se rejeita a abordagem alemã e se prefere a clássica abordagem da educação para o pluralismo).
No entanto, a abordagem alemã, muito criticada antes da entrada em vigor, tem vindo a ganhar apoiantes no seu próprio país e mesmo noutros estados europeus. Martin Eifert publicou recentemente um artigo (no livro indicado acima) onde demonstra as vantagens da lei alemã e, sobretudo, o facto da sua premissa ser na verdade pouco original ou revolucionária. A lei alemã aplica a posições dominantes num mercado (as plataformas sociais) regras de auto-regulação regulada típicas do direito regulatório e do direito consumidor, e que conhecemos bem dos mercados das utilities ou dos mercados financeiros. Aliás, a lei alemã inspira-se muito no direito regulatório financeiro.
Eu acrescentaria ainda que a internet e sobretudo a internet dos conteúdos coloca-se num local jurídico semelhante aquele que é tratado no direito da União Europeia como um serviço económico de interesse geral, onde se vê com naturalidade a exigência de controlos regulatórios, ainda que mínimos e assentes na sedimentação bastante sólida do direito penal. Sobretudo com melhorias, como a atribuição do direito de reposição a titulares da liberdade de expressão que tenham visto conteúdos suprimidos erradamente, a lei alemã parece oferecer um paliativo para a total incapacidade do direito atual em evitar os danos provocados pela desinformação, pelas notícias falsas. Danos esses que na internet atingem uma intensidade que nunca antes fora conhecida.
A lei alemã, ao permitir e até convidar à utilização de uma auto-regulação das plataformas, associações de plataformas, entidades da sociedade civil. Ao instá-las, em conjunto com um regulador público, a decidirem sobre o que é desinformação ou não, o que é fake news ou não e, portanto, o que viola ou não outros interesses em presença, passíveis de configurarem crime, está a colocar a intervenção jurídica no seu local certo: a busca de elementos de contexto, a busca de parâmetros específicos para a internet, capazes de fundamentar uma decisão de identificação e exclusão de fake news, de desinformação. Há na lei alemã ecos da "contextual integrity" de Helen Nissenbaum, que do campo da privacidade, pode aqui chegar a um outro campo muito frutífero para o desenvolvimento de regras jurídicas regulatórias.
Se o modelo vingar e contagiar a Europa, tal como a lei alemã de proteção de dados fez, lá dos seus primórdios de 1977 (onde por exemplo previu e antecipou o Encarregado de Proteção de Dados, que viria a ser obrigatório em toda a Europa em 2018), então, para além da privacidade, a Europa passará a contar com outra linha de ruptura face ao modelo norte-americano: o combate contra a desinformação. Mesmo que seja preciso esperar 40 anos.