Direito para a Quarentena #1 - O Estado de Emergência
O constitucionalismo cuidou de prever a sua própria suspensão. Se olharmos para ele - e para o Estado de Direito - como uma forma de integrar dois elementos em tensão - exercício de poder sobre uma comunidade e proteção de liberdade fundamentais - os denominados estados de exceção podem ser vistos como o fim do constitucionalismo e como tal como um perigo a evitar. Uma vez que o século XX conheceu várias experiências históricas de interrupção desta tensão, sempre a favor do exercício do poder e contra o exercício de liberdades (o anarquismo nunca triunfou em lado nenhum), o constitucionalismo procurou resolver o problema prevendo as situações em que a suspensão de direitos pode ser possível no âmbito de um exercício de poder excecional. Pretende-se que o constitucionalismo integre a sua própria limitação. O artigo 19.º da Constituição deve ser lido assim, à semelhança do que sucede com outros textos constitucionais, como por exemplo o alemão, espanhol ou francês.
Neste sentido, o legislador ordinário desenvolveu um regime jurídico do estado de sítio e do estado de emergência. Este regime, como desde logo decorre da Constituição, é excecional e temporário. Aliás, em revisão constitucional de 1982, acrescentou o período máximo de 15 dias.
É um procedimento especialmente regulado pela Constituição, onde a intervenção dos vários poderes de soberania foi cuidadosamente pensada: o Presidente da República decide, mas só depois de ouvido o Governo e da autorização da Assembleia da República. É, pois, um dos mais participados mecanismos constitucionais.
O seu ponto mais importante é, evidentemente, o regime substantivo de suspensão do exercício de direitos, aliás, a epígrafe atual do artigo 19.º. Muito se escreveu sobre o seu n.º 6, procurando dele retirar um catálogo de super-direitos constitucionais, uma vez que este número impede que, mesmo em estados de exceção possam afetados "os direitos à vida, à integridade pessoal, à identidade pessoal, à capacidade civil e à cidadania, a não retroatividade da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos e a liberdade de consciência e de religião". Não sendo possível defender que existem, em normalidade constitucional, super-direitos fundamentais, a verdade é que, em cenário de suspensão, não há outra interpretação possível a retirar do n.º 6 que não a da preferência constitucional por certos direitos e liberdades. Os direitos supra referidos são pois direitos à prova de estados de exceção e se forem atingidos estaremos fora do domínio autorizado pelo texto constitucional e em cenário de ruptura.
E para que serve este regime? A Constituição também responde. Os n.ºs 4 e 8 prevêem a inescapável aplicação do princípio da proporcionalidade na tomada das "providências necessárias e adequadas ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional".
E este é o ponto fundamental: o estado de emergência e o estado de sítio pressupõem a impossibilidade de lidar com situações de emergência no quadro amplo da tensão constitucional supra referida. A decisão de decretar qualquer um deles deve pois começar sempre por aferir se esse pressuposto está verificado. Mas significa também que há um conjunto, mais ou menos obscuro de competências que é conferido diretamente pela constituição. Essa obscuridade tem como único critério de dissipação e escrutínio a necessidade e adequação das medidas às situações empíricas que sejam utilizadas como justificação. Esta amplitude de competência, enquanto derrogação do due process legislativo e administrativo é, historicamente o grande perigo dos estado de exceção e deve merecer da comunidade uma apreciação crítica contínua.
Num quadro de necessidade de isolamento social, face à ciência conhecida, é fácil compreender que uma violação reiterada deste isolamento, no exercício de várias liberdades constitucionais - direito de circulação, de reunião, de manifestação, entre outros - pode ser motivo para suspender, ainda que parcialmente estes direitos. Tratar-se-ia de um caso clássico de utilizar o receio da capacidade sancionatória do estado para conseguir através de hetero-regulação aquilo que não é possível por auto-regulação e auto-limitação de direitos. O pluralismo das sociedades contemporâneas e a instabilidade emocional de situações de pandemia podem unir-se para tornar difícil um auto-ajustamento da comunidade a medidas de isolamento social. Nesse caso a suspensão de alguns direitos fundamentais com o decorrente regime administrativo e sancionatório que ele permite pode ser a melhor solução. Mas devemos sempre recordar que o estado de emergência, como situação de exceção constitucional e de suspensão de liberdades fundamentais é algo que deve ser visto sempre como transitório e enquadrado pela Constituição, que continua a aplicar-se. E quanto a um núcleo de liberdades fundamentais acima identificado, a Constituição continuará a valer ainda de forma mais intensa.