Direito (Constitucional), Política e "Cercas Sanitárias"
A relação entre Direito (Constitucional) e Política é uma trivialidade. Mas talvez valha a pena recuperar alguns dos lugares-comum dessa evidência, no âmbito da discussão que se vem realizando em Portugal a propósito da eleição dos vice-presidentes da Assembleia da República e, de forma mais vasta, quanto à possibilidade de se realizar uma "cerca sanitária" quanto a um partido político.
A primeira trivialidade é a de que política e direito são realidades distintas. A política é um método para governar, o direito (no sentido aqui adotado) um sistema de normas. É fácil de perceber se que pode (e a partir de dado momento, deve) governar através de um sistema de normas, mas não só.
Assim, a segunda trivialidade é a de que à política e ao direito podem ser imputados domínios distintos mesmo que parcialmente coincidentes. Talvez seja esclarecedor falar-se de uma relação simbiótica em que a política precedeu historicamente o direito e o direito gerou condições para mais política.
Em sistemas constitucionais é inequívoco que o direito regula a política e estabelece-lhe certos limites. O método desenvolve-se dentro de certas regras (pelo menos até essas regras serem alteradas ou desaparecerem). Mas isto também significa que o que o direito (constitucional) não regula fica para o domínio da política. Pode até talvez ir-se mais longe e dizer que aquilo que o direito constitucional não quis dizer (e cabe aos tribunais constitucionais a última palavra sobre isso) fica para a política.
No caso português da eleição dos vice-presidentes da Assembleia da República, dispõe a alínea b) do artigo 175.º da CRP que cabe à AR "[e]leger por maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções o seu Presidente e os demais membros da Mesa, sendo os quatro Vice-Presidentes eleitos sob proposta dos quatro maiores grupos parlamentares". Esta é a única disposição constitucional que se ocupa desta matéria. Como em relação a qualquer enunciado normativo, há que interpretá-lo e dele extrair uma norma. O método interpretativo pode ser discutido mas parece relativamente pacífico que a intenção do legislador e o fim da norma são aspetos distintos do processo interpretativo. Ou seja, mesmo que consideremos que a alínea b) do artigo 175.º tinha um certo sentido para o legislador constitucional isto não significa que seja o sentido decisivo que devemos dar à norma. Caso contrário toda interpretação estaria presa ao momento originário de produção dos enunciados normativos.
Isto significa que o direito (constitucional) reservou para si apenas o tratamento da iniciativa quanto aos vice-presidentes da AR, atribuindo-a aos quatro maiores grupos parlamentares. A eleição, contudo, fica na disponibilidade dos deputados, nos termos das regras gerais de votação. Nesta medida, os acordos que possam ser feitos no âmbito desta votação, desde que não contrariem qualquer outra regra constitucional ou legal, nada têm que ver com o direito e pertencem ao domínio da liberdade política-democrática, onde devem ser apreciados e avaliados.
Imagine-se que a maioria dos partidos da Assembleia da República respeitam a alínea b) do artigo 175.º da Constituição, mas aquando da votação acordam em não eleger um deputado proposto por um partido ou até qualquer deputado proposto por um partido. Existe neste caso algum problema jurídico ou trata-se de uma questão política?
Poder-se-ia dizer que este tipo de acordo viola o direito de oposição, mas o n.º 2 do artigo 114.º determina que "[é] reconhecido às minorias o direito de oposição democrática, nos termos da Constituição e da lei". O que será este nos termos da Constituição e da lei? Por si só a resposta a esta pegunta mereceria muito mais do que um post, mas parece estranho que inclua o direito de ver eleito um dos seus deputados enquanto membro de um dos grupos parlamentares maioritários. Por isso deixemos de lado a questão da eleição dos vice-presidentes da AR como questão política, desde que cumprido o disposto na alínea b) do artigo 175.º da CRP. Não há, constitucionalmente, um direito a ser eleito vice-presidente da Assembleia da República dirigido a deputados de um determinado grupo parlamentar.
O que resta então da "cerca sanitária" enquanto questão jurídica? A resposta parece fazer-nos regressar às trivialidades jurídicas: sempre que esta cerca sanitária implique uma potencial restrição a um direito de oposição (ou outro direito ou liberdade política) teremos uma questão jurídica para analisar. É certo que o constitucionalismo nasceu sob o tema da preocupação contra-maioritária, que leva, por exemplo na linguagem norte-americana, a falar-se dos direitos fundamentais e dos direitos de oposição como trumps against the majority, mas isso não significa que tudo esteja constitucionalizado ou mesmo juridificado: muito fica para o normal debate democrático: e se uma certa corrente de pensamento pode obter representação parlamentar, nada impede que as demais correntes de pensamento possam unir-se contra ela, com respeito pelas regras jurídicas que disciplinam o funcionamento do processo democrático (incluindo o direito de oposição). Este dinamismo geométrico pode ter muito interesse político mas acontece no âmbito das regras jurídicas e não contra elas.
Aliás, veja-se o conteúdo que a lei, por intermédio do Estatuto do Direito de Oposição (Lei n.º 24/98, de 26 de maio) atribui a este direito: "Entende-se por oposição a actividade de acompanhamento, fiscalização e crítica das orientações políticas do Governo ou dos órgãos executivos das Regiões Autónomas e das autarquias locais de natureza representativa". Percebe-se com clareza que é um direito atribuído contra o poder executivo, por isso dele não beneficiando o partido que sustenta o Governo (artigo 3.º/1). Não é atribuído para disciplinar as relações políticas no âmbito da Assembleia da República.
Quanto às relações entre partidos no âmbito da própria Assembleia da República, a Constituição dispõe, para além do que possa retirar-se diretamente do próprio princípio democrático (fora do escopo deste texto mas sem o afetar), nos artigos 147.º a 160.º e 176.º a 181.º e aqui encontramos a trivialidade final: qualquer cerca sanitária terá de respeitar estas regras de estatuto dos deputados e funcionamento da Assembleia, que são aquelas que o legislador constituinte e constitucional entendeu concretizarem o essencial do carácter orgânico e procedimental do princípio democrático no âmbito da AR. Mais do que isso parece ser impossível de imputar ao direito (constitucional) e fica para o domínio da política.