Cinemateca: uma proposta, uma fundação
Há palavras que se transformam em anátemas. "Fundação" é uma delas. Basta a sua pronúncia para haver uma presunção generalizada de corrupção, falcatruas e afins. Se a fundação surge ligada ao Estado é pior, mas mesmo as fundações privadas começam a sentir o contágio.
Não é que tudo esteja bem no reino fundacional. Não está. Mas não está pior do que noutras dimensões da nossa vida colectiva, como a vida das sociedades comerciais ou das instituições políticas. Sobretudo, no domínio privado, as fundações portuguesas são herdeiras de uma tradição muito importante: as causas pias medievais, da prática caritativa católica. A outra tradição que as sustenta nunca entrou no léxico fundacional, faltou-lhe a História: a filantropia dos excedentes do capitalismo industrial. Mas ainda vamos muito a tempo.
Muita da má imagem das fundações é, pois, merecida. Mas, como em quase tudo, muita é fruto da desinformação, também ajudada pela complexidade (para não dizer confusão) da matéria. Veja-se a designação "fundação pública". Legalmente, o que é importante, pois é nesse sentido que todos os documentos e comunicações oficiais a ela se devem referir, uma fundação pública não deveria ser mais do que um instituto público, que prosseguisse fins de interesse geral e cujos rendimentos do património constituissem parte considerável das suas receitas (sic), de acordo com a própria definição legal (vejam o n.º 2 do artigo 51º). Faz sentido. Significaria ser uma pessoa colectiva do Estado que além de ser legalmente autónoma, conseguiria ser financeiramente autónoma, o que nos dias que correm é o mais importante. Dir-se-á mesmo que, no actual clima de caça as bruxas e limpeza moral, um bom critério para cortar no Estado (e no Estado cortar é preciso) é determinar se certo serviço (i) tem interesse público e (ii) é financeiramente sustentável.
Contudo, podemos deduzir do Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES), uma noção distinta de "fundação pública". Uma que já não é uma subespécie de instituto público e que até pode reger-se por regras de Direito Privado (vejam o artigo 129º), as fundações públicas de ensino superior, a que o legislador chama de fundações públicas apesar de parecer querer aplicar-lhes um regime distinto das fundações públicas referidas no páragrafo anterior. Começa a perceber-se a razão da desinformação e do preconceito em relação às fundações.
Para o exemplo que aqui vou dar, quero deixar claro duas coisas: (i) sou a favor da existência de uma cinemateca pública ou, pelo menos, com presença orgânica-institucional pública, por considerar que se trata de uma área da cultura onde a memória e a divulgação são facilmente secundarizadas ou mesmo afastadas por estritas considerações de mercado e porque, em algumas áreas específicas, a produção cinematográfica tem interesse geral, como são os casos de produções reconhecidas e/ou premiadas nacional e internacionalmente ou referentes a momentos históricos relevantes; (ii) tudo isto é, evidentemente, uma consideração política e, por isso, sendo o critério do interesse público um critério necessário (embora não suficiente), se o Estado decidir, politicamente, que não tem interesse numa Cinemateca está no direito dele (desde que apresente a decisão como tal e não a camufle com razões financeiras).
Ora, não se presumindo, até indicação expressa em contrário ou, pelo menos, uma indicação política de que os cortes ditados por razões financeiras estão necessariamente ligados a um juízo político negativo sobre a prossecução pública das atribuições das entidades visadas, a presunção possível deve ser no sentido de que, pese embora os cortes, as atribuições ou mesmo certas entidades devem manter-se na esfera do Estado (dado o seu interesse público, primeira razão que apontei), pese embora com outro modelo, que permita poupanças financeiras (segunda razão que apontei).
No recém-conhecido Plano de Redução e Melhoria da Administração Central do Estado (PREMAC) indica-se a Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema, IP (Instituto Público) como uma das entidades a extinguir, sem indicação do destino das suas atribuições (cf. pág. 21). Contudo, notícias recentes, bem como a referência, no PREMAC, à criação de um Agrupamento Complementar de Empresas (ACE) no âmbito da Secretaria de Estado da Cultura (cf. pág. 23), parecem indicar que a Cinemateca passará a empresa pública.
Há uma dificuldade antiga, que é também um discussão científica que corre nas faculdades de direito, sobre a razão de criar, através da forma de empresa, entidades públicas que não estão viradas para a produção de bens e serviços no mercado, em regime de concorrência, quando o Direito Público oferece outras soluções. A chamada "fuga para o direito privado" não parece ser explicação bastante, pois, tal fuga, que mais não é do que a busca por regimes jurídicos mais flexíveis do ponto de vista da gestão, também podem (e devem) ser encontrados no âmbito e no respeito pelo Direito Público. Creio, porém, que a razão justificativa da alteração de natureza da Cinemateca - de instituto público para empresa pública - terá que ver com o regime jurídico aplicável tanto quanto com o modelo de gestão pretendido.
Ora, a minha pergunta é a seguinte: o que conseguirá a forma empresarial fazer pela Cinemateca, que a forma fundacional não possa fazer melhor? E, se não como fundação pública clássica, subtipo de instituto público, então como fundação pública autónoma, inspirada pelo direito privado.
Para responder a esta questão haverá que responder às duas questões que coloquei acima: (i) terá que haver interesse público nas atribuições da Cinemateca e (ii) terá que haver viabilidade financeira para ela. Mas ainda podemos, para destrinçar entre fundação e empresa, colocar uma outra questão: (iii) qual o tipo de atribuições e modo de prossecução delas?
A primeira questão está já respondida: sim, pelas razões apontadas. A segunda questão, a algumas semanas de se conhecer a proposta de orçamento de Estado para 2012, está respondida no orçamento de Estado para este ano (mas que é assim, pelo menos, desde 2009): a Cinemateca tem autonomia financeira graças às suas receitas próprias (tanto quanto se pode confirmar aqui, a partir da página 24). Ou seja, não depende maioritariamente do Orçamento de Estado.
Quanto à última questão, note-se a área em que desenvolve as suas atribuições a Cinemateca, a área cultural, uma área típica de desenvolvimento de fins fundacionais privados. Não é, por outro lado, uma área de típica concorrência mercado, em que se ofereçam produtos e serviços competitivos e concorrentes. Tal não deve ser confundido com a existência de modelos de gestão eficientes, naturalmente. O que pretendemos dizer é que parecem evidentes os sinais de que o tipo de actividade desenvolvida pela Cinemateca - prossecução de fins de interesse geral cultural sem busca pelo lucro, a partir de um património próprio e dos seus rendimentos coaduna-se com o modelo institucional fundacional. Mesmo que se considerasse, por razões que seria importante discutir, que o figurino legal da fundação pública enquanto instituto público - modelo actual - não serve à Cinemateca parece mais sensato e eficiente a opção pelo modelo fundacional autónomo, semelhante ao que o Estado tem utilizado noutras ocasiões mas com o devido controlo no modelo de governo e gestão.
Contudo, o que a extinção e possível conversão em empresa pública confirma é que: (i) a razão de ser da extinção não foi o peso para as finanças públicas (a Cinemateca tem autonomia financeira); (ii) a razão de ser da preferência pelo modelo empresarial para nova encarnação da Cinemateca não é uma inevitabilidade ou sequer preferível quando existe uma opção fundacional mais consentânea com o tipo e modo de prossecução das atribuições da Cinemateca.
Resta, pois, parece-me o preconceito em relação à fundação como explicação para não tornar a Cinemateca uma entidade fundacional. Mas esse preconceito, podendo ter um efeito positivo, deveria apenas levar à uma reforma urgente, como, aliás, está previsto no memorando de entendimento, mas há muito é reclamado pela literatura especializada, do regime jurídico e das práticas de bom governo da área fundacional. Daí que a minha proposta seja mesmo essa: por que não a Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema, como fundação pública de novo regime jurídico adaptado às exigências de um Estado que se quer social e financeiramente sustentável?
Noto que a Cinemateca francesa, talvez a mais conceituada cinemateca do mundo, é constituída como associação, verdadadeira parceria público-privado institucional, o que também seria interessante no nosso caso, não fosse o facto de haver menos tradição em Portugal de associativismo público-privado. Já no domínio fundacional, esse tipo de parceria leva já algum caminho, como por exemplo Serralves ou a Fundação Colecção Berardo. O ponto mantém-se: uma forma jurídica que convoque a linguagem comum do sector público e do terceiro sector parece, neste domínio, desde que dotado do conveniente e eficiente regime, muito mais curial do que a forma empresarial.
Amigo da Cinemateca n.º 81.