Esquecer por regra
A questão não é nova. Tropecei nela pela primeira vez no âmbito de um trabalho académico sobre a relação entre a intimidade e os media no ciberespaço, em 2003. Já não era nova então. Tem vindo a ganhar importância na razão directa da difusão da internet. Refiro-me ao direito ao esquecimento.
O problema tal como era colocado na sua formulação original ganhou entretanto novos contornos. Quando se começou a falar de direito ao esquecimento pretendia encontrar-se uma resposta para os casos em que alguém tinha visto a sua esfera pública bastante ampliada num determinado período da sua vida, voltando depois a agir de um modo mais privado com a natural compressão da esfera pública. Nestes casos, começou a defender-se, não era legítimo que fosse aplicado ao remanescente da vida pessoa o mesmo padrão de escrutínio da intimidade que era aplicado no período de maior notoriedade pública.
O problema na internet é ligeiramente distinto mas parte dos contornos que expliquei acima. O direito ao esquecimento de que se fala aqui diz respeito ao rasto digital que deixamos, voluntaria ou inadvertidamente. Ou seja, a questão generalizou-se não apenas àqueles que têm uma vida com maior notoriedade mas a qualquer cidadão com rasto digital. O que, neste momento, é já uma grande parte da população mundial.
Esta questão tem estado intermitentemente na ordem do dia. Num dos meus últimos posts dei conta de uma proposta de uma congressista norte-americana intitulada "Do not track me online", que, na prática, prevê modos de garantir a possibilidade do direito ao esquecimento.
Na internet, a mole de informação tem um potencial infinito de acumulação, por isso, recorrentemente, algum acontecimento ou alguém nos recorda que, na internet, o direito ao esquecimento faz ainda mais sentido.
Em 2009, o Rui remetia para este artigo da Wired, que dava conta de uma obra hoje considerada fundamental neste domínio - Delete: The Virtue of Forgetting in the Digital Age, de Viktor Mayer-Schonberger. Eu sugiro ainda mais duas de Daniel Solove, Understanding Privacy e The Future of Reputation: Gossip, Rumor and Privacy on the Internet.
O que todas estas obras permitem compreender é que temos pela frente uma batalha pela privacidade por regra na internet, contra o princípio inverso, defendido por exemplo por Mark Zuckerberg, o criador do Facebook. A internet, sobretudo devido aos motores de busca e às redes sociais, está a criar um paradigma de público por regra e privacidade a pedido, quando no mundo real sempre vigorou a ideia contrária. Ideia essa, aliás, que justificava o direito ao esquecimento no sentido clássico que apresentei acima.
Ora, são cada vez mais os sinais de que o paradigma clássico deve ser mantido na internet, apesar de haver toda uma geração para a qual, provavelmente, ele não faz sentido. O que defendo é que ao invés de acharmos que para essa geração a privacidade por regra já não faz sentido, devemos considerar que para eles a privacidade por regra ainda não faz sentido. E digo ainda porque ainda não sentiram na pele os danos provocados pela publicidade como regra e privacidade a pedido.
A este respeito é bom o exemplo com que o Tiago retoma o assunto, a propósito da discussão espanhola em torno dos pedidos para por um prazo de validade nos resultados de um dos verbos mais famosos dos últimos tempos: googlar. O que temos aí é, afinal, um conjunto de primeiros confrontados com o paradigma publicidade como regra, privacidade a pedido. Todo o rasto de hiperligações que nos refere é agregado pelo Google para toda a eternidade. Mas mais, o Google escolhe qual o critério da memória.
Claro que é fácil de compreender pelo menos uma das razões do paradigma dominante: a inércia técnica. É mais fácil registar tudo e ir retirando à medida do pedido, passando esse ónus para cada um dos destinatários, do que ter filtros para, por exemplo, distinguir nomes próprios nas pesquisas e impedir a sua divulgação em determinados casos. Mas não é impossível. E contra a inércia técnica é preciso opor o argumentos dos direitos.
As duas soluções mais sensatas seriam, por um lado, tipificar quais as referências digitais que uma pessoa poderia impedir através de um pedido directo ao seu autor, fosse um blogger ou o Google, sob pena de se aplicar um processo expedito, do género notice-and-takedown, via entidade administrativa independente e tribunais; por outro, limitar essa mesma informação tipificada - por ex: nomes próprios sem interesse histórico - a um período máximo de armazenamento, excepto solicitação positiva do visado em contrário. Ou seja inverter-se-ia, ou pelo menos, mitigar-se-ia o paradigma: seria a privacidade a prevalecer a não ser que a publicidade fosse pedida.
Infelizmente este novo paradigma é regra na nossa legislação, aliás, por imposição comunitária*, o que tem levado alguns políticos a pedirem alterações às leis existentes para que, a manter-se a publicidade por defeito, ao menos a privacidade não seja a pedido mas a prazo. Um prazo para o esquecimento. Pelo menos o digital.
*Vejam-se os artigos 5º e 6º da Lei n.º 41/2004, de 18 de Agosto.