Ensaio sobre a indução
(em estéreo com o Jugular)
Caro Pedro, passei alguns dia a matutar sobre o teu último artigo no Público, intitulado "Questões de fé", em que abordas o acordo entre o Estado português e o Imamat Ismaili. Confesso que, sendo a tua bottom line, a "fé" de alguns socialistas, como lhe chamaste, a coisa intrigou-me, pois referes-te a um acordo que teve a aprovação unânime do Parlamento (num momento em que o PS já não tinha aí maioria absoluta) e que foi ratificado pelo Presidente da República (que não consta que seja socialista).
Ora esta perplexidade levou-me a ir investigar um pouco mais a questão que analisas e os argumentos que apresentas.
Em primeiro lugar, dizes que o Estado português decidiu unilateralmente reconhecer a personalidade jurídica internacional do Imamat Ismaili, algo que só Moçambique tinha feito. Não vejo qual é o problema. Na verdade não vejo que exista algum.
Os Estados são livres para reconhecer a personalidade internacional de outros Estados ou entes jurídicos internacionais. Aliás, o reconhecimento é um exemplo de acto jurídico unilateral internacional, por isso, sempre Portugal teria que reconhecer unilateralmente. Não há outro modo de reconhecer.
Acresce que nada há de estranho, como notas, no reconhecimento feito por Portugal e Moçambique. São países com forte implantação da comunidade Ismaili e, logo, é normal que sejam mais sensíveis ao seu reconhecimento como ente jurídico internacional. Continuo a não ver qualquer problema. Pelo contrário, vejo argumentos para considerar correcta a decisão da República portuguesa, até bastante progressista e esclarecida, dada a natureza transnacional do Imamat.
O teu segundo argumento, se bem o compreendo, é inaceitável. Pareces estar a defender uma singularidade para a Concordata que torna todos e quaisquer demais acordos impossíveis. Dizes que acordos com confissões minoritárias não são explicáveis. Mas, passe o paradoxo, não explicas porquê. Reconhecendo o Estado português o Imamat Ismaili como um sujeito de direito internacional por que não há-de celebrar com ele um tratado, de âmbito religioso, desde que respeite a Constituição? Apenas porque se trata de uma confissão minoritária? Mas não protege a Constituição as minorias? Se algo está em falta em Portugal é a celebração de mais acordos entre o Estado e confissões religiosas com expressão no país. Evidentemente na medida da sua representatividade, como é da mais elementar sensatez. Mas tal não impede que o Estado celebre este acordo com o Imamat. Pelo contrário, recomenda-o. E parece ser um óptimo precedente. Claro e pouco arenoso.
O teu último argumento, parece-me, labora num equívoco. Pelo que percebo presumes que o acordo celebrado tem o seu fundamento no artigo 45º da Lei da liberdade religiosa e é por isso que falas da falta da sua submissão à Comissão da Liberdade Religiosa (tal como exige o artigo 46º/2 da mesma lei). Contudo, não me parece que seja o caso.
Em primeiro lugar o tipo de acordos previstos no artigo 45º da Lei da liberdade religiosa parece ser aplicável a relações entre o Estado e uma forma nacional das igrejas ou comunidades religiosas. Ora, o acordo que Portugal celebrou com o Imamat Ismaili, como tu próprio referes, não é com uma encarnação nacional do Imamat Ismaili mas com o único e transnacional Imamat Ismaili. E daí a necessidade de reconhecer a sua personalidade jurídica internacional.
Esta minha interpretação parece confirmada pela fundamentação jurídica que o Parlamento e o Presidente de República utilizaram para intervir no processo. O parlamento aprovou o acordo, nos termos da alínea i) do artigo 161º da Constituição, respeitante a competência em matéria internacional (e não nos termos da Lei da Liberdade Religiosa). E o Presidente da República ratificou (termo reservado, como sabes, para a sua intervenção nos procedimento de conclusão de tratados internacionais) nos termos da alínea b) nos termos do artigo 135º da Constituição, que diz respeito à sua competência nas relações internacionais (e não nos termos da Lei de Liberdade Religiosa). Logo, prevalecendo este tratado sobre a lei da liberdade religiosa, não seria necessária a intervenção da Comissão.
Assim sendo, aquilo com que ficamos no fim de tudo isto, é com um enorme sinal de tolerância por parte do Estado português, concertado ao nível dos vários órgãos de soberania, que decidiu celebrar um acordo com uma comunidade religiosa minoritária mas com importante implantação em Portugal, desde logo, como referes, ao nível da sua actividade beneficente.
Mesmo que admitamos que tal resultou de bom lobby junto das várias instâncias públicas que intervieram, e não havendo nada de ilegal ou ilegítimo nisso, só apetece desejar que igual atitude tenham outras igrejas e comunidades religiosas em Portugal, a bem da diversidade e da pluralidade.
Finalmente, custa-me que tenhas visto em tudo isto um acto de "fé" socialista, quando as relações da comunidade ismaili se estendem a todos os quadrantes político-partidários e quando o Parlamento e o Presidente da República (não socialistas, relembre-se) intervieram decisivamente no processo, tendo podido impedi-lo se o desejassem.