Devia ser o ano de 1992 ou 1993, porque nesse tempo os filmes não estreavam na televisão. Entre as salas de cinema e o pequeno ecrã eram meses de espera. Às vezes, anos.
Mas nunca mais me esqueci deste filme que só vi essa única vez. Por essa razão, e há medida que o tempo passa e essa memória persiste, tenho passado vários momentos a ponderar os motivos dessa persistência.
Talvez o mais fácil seja começar pelo nome. Mediterrâneo. O Mediterrâneo é para mim uma casa imaterial, cultural, que pouco tem de físico e de acessível. Por contraposição, é o Atlântico que é de acesso livre e fácil para aqueles que nascem e vivem em Portugal.
Na verdade, o meu Mediterrâneo é o interior da Península, um interior que sempre encontrei limitado pela Espanha, e que só na história da Ibéria Romana e do Al-Andalus me permite um pensamento unificado e romântico, em que se cavalga do Atlântico até esse mar entre terras. Mas por ser imaterial e cultural não perde qualquer valor. Pelo contrário: talvez exerça por isso maior fascínio (sobre isto o melhor é ler o magnífico "Mediterrâneo", de João Luís Barreto Guimarães). Na falta de uma hegemonia atlântica na minha mundividência, de um sentimento original de pertença atlântica, foi o Mediterrâneo a minha primeira noção cultural agregadora. Por isso, é para mim hoje evidente que aquele título tinha de me atrair.
Filme de 1991, de Gabriele Salvarores, Óscar para o melhor filme estrangeiro em 1992 e último episódio de uma trilogia da fuga - "dedicato a tutti quelli que stanno scappando" - integrada por Marrakech Express e Turné. Um dos meus filmes preferidos, que me acompanha desde 1992 (ou 93) e que eu persigo há pelo menos dez anos quando o comecei a procurar para a minha coleção. Farto de tentar conseguir uma edição portuguesa ou inglesa, decidi finalmente render-me ao original italiano, numa edição blu-ray, com uma belíssima capa. Foi o meu reencontro com o filme, 30 anos depois do seu lançamento.
É realmente um filme sobre a fuga, a fuga não apenas exterior, mas interior, para mais, agudizada por um contexto de guerra. Uma patrulha italiana toma uma pequena ilha grega, durante a 2.ª Guerra Mundial, e lá fica sem quaisquer contactos com o mundo durante três anos, vivendo a existência dos habitantes, a quem se vai de modos distintos ligando. A beleza do filme está tanto no deslumbrante cenário natural da ilha de Megisti (que está apenas a 2 km da Turquia...), conhecida como Kastellorizo, como nas experiências por que passam os homens da patrulha italiana na sua interação com os habitantes da ilha. O modo como essa interação afeta o seu regresso ao mundo, após a derrota da Itália na guerra, dá sentido à inserção do filme na trilogia da fuga.
Não me é difícil explicar porque gosto tanto deste filme, sobretudo agora que o revi e pude confirmar o que era efabulação sobre a memória ou memória mesmo. Há uma combinação de sensações palpáveis e familiares, trazidas pela Grécia insular, com os seus cheiros, sabores e texturas, que combinam ali com traços fundamentais do imaginário humano: a viagem, a reinvenção, o confronto com a passagem do tempo sobre a auto-imagem. Não sendo uma obra-prima, percebe-se a qualificação de "filme de culto" que a descrição do blu-ray imputa ao filme. Situado na confluência das civilizações que nos moldaram e com que temos maior proximidade e lançado num tempo que é o da adolescência de uma geração hoje a caminho da meia idade, mas evocando um período que já quase ninguém vivo recorda, Mediterrâneo torna-se facilmente uma alegoria íntima de modos possíveis de lidar com a passagem do tempo.
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