No discurso coloquial do quotidiano é comum ouvir ou perceber a liberdade de expressão como um direito absoluto, sem limites. Creio que sociologica e psicologicamente tal poderá ser explicado pelo facto de que é a liberdade fundamental que as pessoas mais sentem como possivelmente ameaçada desde a infância. A rebeldia a sermos mandados calar pelos adultos desembocou nas redes sociais onde ninguém nos pode calar.
Contudo, quem parta de uma perspectiva jurídica para a análise das liberdades fundamentais, e, como tal, também da liberdade de expressão, sabe que não existem direitos absolutos e que todo o exercício de direitos fundamentais pode conhecer limitações impostas por outros direitos ou interesses constitucionalmente admitidos. O caso está, portanto, em determinar, num dado momento histórico, como ponderamos cada direito e liberdade face aos demais, numa enorme e complexa constelação.
É certo que, justamente porque se trata de um contínuo de operações de ponderação, ancoradas nas características sociais, económicas, políticas de uma determinada época, cada ponderação será sensível a esses aspectos, que por seu turno varia, ou pode variar, com as geografias.
A busca por bons critérios de ponderação entre liberdade de expressão e proteção da privacidade é, por exemplo, uma questão jurídica essencial desde o princípio do século passado, quando a noção moderna de privacidade emergiu. Devido às redes sociais, fenómenos com pouco mais do que uma década, creio que estamos a viver uma secular revisão do conceito de privacidade que irá provocar um ajustamento dos mecanismos jurídicos para lidar com ela.
De modo famoso, que já aqui referi várias vezes, John Stuart Mill apresentou o seu critério de ponderação para determinar limitações admissíveis à liberdade de expressão e de imprensa no que ficou até hoje conhecido como o princípio do dano (the harm principle): se a expressão de ideias e convições puder provocar ou provoque danos deve ser limitada até à medida necessária para evitar esses danos ou, pelo menos, para evitá-los até uma medida que seja aceitável face aos danos que resultem da limitação da liberdade de expressão (o que por seu turno implica, em cada caso concreto, a valorização da informação que se pretende expressar). Não por acaso, os critérios de averiguação de limitações aceitáveis à liberdade de expressão por parte do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos são: i) a restrição ter de ser admitida por lei de modo expresso; ii) a restrição ter de prosseguir um fim legítimo como "national security, territorial integrity or public safety, for the prevention of disorder or crime, for the protection of health or morals, for the protection of the reputation or rights of others, for preventing the disclosure of information received in confidence, or for maintaining the authority and impartiality of the judiciary"; e, finalmente, iii) a restrição dever ser necessária numa sociedade democrática, ou seja, deve ser possível demonstrar que há uma necessidade urgente na sua restrição. É aqui que TEDH e Mill se encontram, uma vez que o princípio do dano pode ser utilizado para demonstrar a necessidade de restrição numa sociedade democrática (nomeadamente atualizando o exemplo do especulador de milho do próprio Mill).
Os países e as organizações internacionais têm procurado lidar com este novo desafio à ponderação de liberdades fundamentais no contexto das redes sociais de formas muito distintas (sobre o espectro de possibilidades regulatórias e ponderadoras, publiquei este ano um artigo extenso aqui). O Conselho da Europa publicou em 2014 uma Recomendação aos seus Estados Membros referente a um Guia sobre Direitos Humanos para os utilizadores de Internet, acompanhado de um importante Memorando Explicativo. Ainda assim, só em 2018 viria um Estado Europeu regular de forma específica as redes sociais, com a lei alemã "para a melhoria da aplicação do direito nas redes sociais" (designação bastante impressiva do problema a resolver). Nessa lei institui-se um sistema de auto-regulação, em que as redes sociais ficam responsáveis em primeira linha pela verificação da boa aplicação do direito (penal), sem que contudo surjam limitações novas à liberdade de expressão para além daquelas que já estavam tipificadas legalmente no código penal alemão. A França pensou em seguir o caminho alemão, mas acabou por optar por uma versão mais moderada (Loi Avia).
Talvez, infelizmente, as ponderações feitas a propósito da Lei Avia venham a mudar com o recente caso do professor Samuel Paty e o papel que se começa a perceber que as redes sociais tiveram no seu assassinato, sendo um veículo de incitamento à violência, a coberto da liberdade de expressão.
O problema é bastante complicado devido à forma angulosa das redes sociais, que combinam diversos aspectos de vários meios de comunicação antes de si. Mas a questão central é sempre a mesma: que grau de escrutínio podem as redes sociais fazer sobre o que nelas ocorre e qual a responsabilidade que devem ter.
Até há bem pouco tempo nos dois lados do Atlântico a posição de imunidade das redes sociais prevalecia, não podendo elas serem responsáveis pelo exercício da liberdade de expressão dos seus utilizadores, o que as deixou livres para definirem os seus próprios padrões de controlo dessa liberdade de expressão. Mas casos recentes quer nos Estados Unidos, quer na Europa demonstram que o tempo da imunidade das redes sociais está a chegar ao fim, quer porque as próprias redes sociais consideram-se responsáveis perante os seus utilizadores pelo tipo de conteúdos que nelas são partilhados (com o Twitter, por exemplo, a retirar conteúdo considerado inadequado), quer porque o Estado começa a entender que deve intervir para além da simples remissão de eventuais conflitos para os tribunais (aliás, pouco preparados para resolver estes conflitos, sem que antes haja qualquer intervenção regulatória preparatória).
Todas as medidas que possam servir para convivermos melhor com as várias liberdades de que dispomos em novos contextos, como as redes sociais, são fundamentais para que o Estado de Direito possa continuar vivo e forte. O caso Samuel Paty permite perceber isso de forma tragicamente urgente: a liberdade de expressão e a liberdade de ensinar, de forma tolerante e pacífica, foram eliminadas com ajuda de uma liberdade de expressão de incitamento ao ódio, à irracionalidade e à violência. As redes sociais permitiram este incitamento de um modo que seria impensável apenas há alguns anos: dificilmente um meio de comunicação (social) clássico permitiria que tal acontecesse ou seria capaz de tamanha amplificação de mensagens de ódio (e daí o problema muito específico de mecanismos como o messenger ou whatsapp hoje em dia impossíveis de distinguir das mensagens via Instagram ou Twitter). Por outro lado, mais nenhuma forma de incitamento, excluída a própria manifestação da turba à porta do professor, adaptando o exemplo de Mill, poderia provocar o efeito difuso das redes sociais. A regulação é cada vez mais necessária. Sobretudo para proteger as liberdades fundamentais, desde logo a própria liberdade de expressão.