Desde o meu post sobre o estado de emergência, no passado dia 16 de março até hoje, dia 24, já vários foram os juspublicistas que vieram a público (passe a aparente redundância) opinar sobre o estado de emergência e temas conexos (caso me tenha escapado algum, por favor, avisem-me).
Jorge Reis Novais, a 19, com "Estado de Emergência – Quatro notas jurídico-constitucionais sobre o Decreto Presidencial", no Observatório Almedina;
João Tiago Silveira, a 20, com "Um Ato de Cobardia Constitucional" no Expresso;
Mário João Fernandes, a 23, com "A Emergência em Todos os Seus Estados", no Eco; e
Miguel Nogueira de Brito, hoje, com "Normalizar a exceção ou formalizar a crise?", no Observador.
[Adenda a 29.03.20] Gonçalo Almeida Ribeiro, a 25, com O estado de exceção constitucional, no Observador.
O tom, com a exceção do último texto, tem sido de crítica. Mas as críticas têm sido distintas e acho importante destacar este aspecto.
A declaração do estado de emergência é inédita na vigência da Constituição e a natureza da emergência que a justificou exige muitas e rápidas medidas, pelo que sempre serão compreensíveis falhas legísticas. Claro que tais falhas geram problemas que podem ser complicados quando têm influência na própria interpretação das normas que se pretende fazer aplicar.
É difícil distinguir, neste contexto, um domínio técnico e um domínio político, estando nós no centro do eixo constitucional. Insuficiências técnicas dos diplomas utilizados para declarar e executar o estado de emergência não só poderão (e deverão) ser lidos politicamente, como terão consequências em aspectos tão diversos das nossas vidas com o exercício de liberdades básicas e a efetivação de responsabilidade de e contra o Estado.
No meu post aqui publicado sobre o estado de emergência já me pronunciei sobre o ângulo substantivo ou material e não creio que valha a pena voltar a ele em profundiade. Registo com contentamento que existam vozes ainda mais incomodadas do que eu com a declaração do estado de emergência, assim como também fico contente com uma larga maioria de pessoas que toma o estado de emergência como necessário. Significa que o pluralismo e o espírito crítico tão necessários para preservar o Estado de Direito democrático estão de boa saúde. Além do mais, face às exigências que a pandemia da Covid-19 nos lança, a questão da decisão de declarar o estado de emergência tornou-se rapidamente uma questão de psicologia política, muito mais do que de demonstração racional de pressupostos empíricos.
Distinto deste ponto mas ainda quanto ao ângulo substantivo encontra-se o debate sobre o conteúdo do decreto de declaração do estado de emergência no que diz respeito aos direitos suspensos. As duas questões que me parecem mais interessantes no debate que entranto surgiu são a necessidade/desnecessidade de suspender o direito à liberdade (artigo 27.º CRP) e a questão da suspensão da liberdade de culto, quanto a saber se é possível diretamente ou se deviam os seus fins ter sido atingidos com a suspensão do direito de reunião. Se quanto à primeira questão parece-me que o debate a esclarece tanto quanto é possível, já quanto à segunda questão parece-me que teremos debate ainda para fazer, que aliás já estava sinalizado pela doutrina (veja-se, por exemplo, o comentário de Gomes Canotilho e Vital Moreira ao artigo 41º da CRP). A questão a resolver parece-me ser a de saber se, não obstante a distinção entre a liberdade de religião e a liberdade de culto, no artigo 41.º CRP e a referência exclusiva à liberdade de religião no n.º 6 do artigo 19.º CRP, é possível distinguir nitidamente liberdade de culto de liberdade de religião. Passo a palavra aos teólogos das várias religiões e credos para que possamos encontrar uma solução para o problema semântico.
Mas o ângulo que verdadeiramente mais tem ganho com o debate público é o formal/orgânico, até porque daí podem advir questões complicadas de validade dos próprios diplomas que declaram o estado de emergência e o executam, bem como de diplomas conexos com o combate à pandemia. E aqui há realmente que apurar a articulação de competências exigida pela Constituição, inclusivamente em estado de emergência, como recorda o n.º 7 do artigo 19.º CRP. Da referência à "ratificação" quanto a matérias legislativas e administrativas num decreto do Presidente da República até ao exercício de restrições a direitos fundamentais sem autorização prévia da Assembleia da República, passando pela forma incerta dos atos de execução de decreto presidencial de declaração do estado de emergência (cf. Decreto do Governo nº 2-A /2020, de 20 de março), optando-se por um diploma administrativo em vez de legislativo, todos estes exemplos, levantados no debate referido, apontam para algo que é conhecido de todos os juristas: no final das contas, serão os tribunais a ter de desembaraçar o novelo que agora foi criado, caso se suscitem questões de validade e de responsabilidade. É pois conveniente que o novelo não se avolume.
Há contudo um ponto que é de saudar, e em que todos os textos parecem convergir, mesmo quando o tom é crítico. Um ponto sobretudo relevante para os que, como eu, têm reservas de princípio quanto à utilização do estado de emergência: parece haver uma genuína concertação entre os órgãos constitucionais determinantes para manter o Estado de direito em tempos de suspensão do exercício de liberdades fundamentais. E este é um baluarte crucial em tempos de incerteza e de dificuldades.