Eutanásia - a questão moral e os problemas epistemológicos
Os estóicos são famosamente lembrados pela sua aceitação do suicídio como uma opção moral adequada em alguns casos. Embora haja uma grande dose de mitificação em torno desta posição estóica, há um fundo de verdade na relação entre a moral estóica e o suicídio.
Uma vez que os estóicos consideravam a virtude - uma disposição excelente da alma - como a única coisa necessária para atingir a felicidade (o florescimento existencial), vários consideraram que, perante certas condições das suas vidas, por-lhes termo era o comportamento virtuoso a adotar. Não é por isso correto dizer que os estóicos defendiam ou defendem o suicídio mas é correto dizer-se que, como noutras correntes filosóficas muito diversas, os estóicos entendiam que a vida humana não se limita a ser uma vida animal, mas uma vida racional. E, por vezes, a auto-preservação dessa vida racional implica a morte. Para os estóicos o que importa não é viver, mas viver bem. Este entendimento da vida humana não é exclusivo dos estóicos. Por exemplo, Meng-Tseu, discípulo de Confúcio e conhecido no Ocidente como Mêncio, afirmou que a morte lhe desagradava mas que existiam coisas que lhe desagradavam mais do que a morte e que, por isso, muitas vezes não evitaria o perigo.
Assumida a premissa de que não há nada de moralmente errado com o desejo e prática da própria morte, no quadro de um pluralismo axiológico, fica claro que, para os que assim pensam, o problema da eutanásia como problema moral levanta vários problemas epistemológicos. Com efeito, aqueles que partilhem de uma ontologia moral monista em que a vida esteja acima de tudo, considerarão o suicídio moralmente reprovável e por maioria de razão a eutanásia.
O problema do valor moral do suicídio está presente nos ordenamentos jurídicos. Uma vez que a criminalização do suicídio, como consequência jurídica da reprovação moral do mesmo, é hoje recusada pela maioria dos ordenamentos jurídicos (mas note-se que até há menos de 70 anos, no Reino Unido, por exemplo, o suicídio era crime) o seu caso próximo é o da criminalização de comportamentos que contribuam para a morte de um determinado sujeito por vontade deste.
O ordenamento jurídico português prevê penalmente dois tipos que vão ao encontro deste problema. O crime de homícidio a pedido da vítima (artigo 134.º CP) e o crime de incitamento ou ajuda ao suicídio (artigo 135.º). Atendendo à formulação do n.º 1 do artigo 134.º, em que o legislador mesmo aceitando que o pedido seja "sério, instante e expresso" pune o "homicídio" a pedido da vítima com pena até 3 anos de prisão, parece haver uma valoração moral, pois claramente prevalece um entendimento de que a vontade séria de um sujeito de que outro sujeito lhe ponha termo à sua vida não deve ser considerada suficiente para afastar a censura mais grave do Direito, a do direito penal. Podemos ainda admitir outra explicação. Não obstante o pedido ser sério, instante e expresso o legislador entende que não estão reunidos os requisitos para uma fiabilidade epistémica que assegure que o pedido decorre de uma vontade autónoma, clara e livre. Ou seja, neste entendimento, o óbice não seria moral mas epistemológico. O problema do legislador seria conseguir atingir um grau de fiabilidade da vontade do sujeito que pretende que outro o mate suficiente para afastar a possibilidade de, verificando-se a morte do sujeito, esta não ter sido contra a vontade deste. E, com o n.º 1 do artigo 134.º o legislador estaria a demonstrar que não se encontra atingido esse grau de fiabilidade.
Haja ou não uma valoração moral a sustentar estes dois crimes, o que implicaria um difícil estudo sobre as convicções morais do legislador e dos próprios eleitores, na posição que aqui se perfilha, assumindo a admissibilidade moral do suicídio, independentemente da posição que se perfilhe sobre a natureza do Direito, então parece claro que ao Direito cabe analisar se face aos textos consitucionais é obrigatório tratar penalmente os comportamentos de terceiros que põem termo à vida de um sujeito por sua vontade.
É difícil determinar qual o fundamento da norma penal. Do mesmo modo é difícil demonstrar que a Constituição exige o tratamento penal dos comportamentos que contribuem para a morte de outrem por sua vontade. O artigo 24.º da Constituição preceitua de modo claro "a vida humana é inviolável". Este preceito pode ser entendido como dirigido ao próprio titular de um bem vida e, nessa medida, o suicídio seria constitucionalmente proibido. Nesse caso a única razão para não haver previsão de um tipo penal para o suicídio, em linha com o homício e os dois tipos penais apresentados acima, seria o da inutilidade do tipo penal, pelo menos no caso do crime consumado. Mas nem a tentativa é punível. Como interpretar esta omissão? Uma hipótese é entender que a formulação da norma do artigo 24.º da Constituição não se aplica ao próprio titular do bem, pois deste modo estar-se-ia a violar de forma inaceitável a autonomia da vontade humana, impondo-se um dever de viver. No entanto, a questão é controvertida, desde logo, como procurámos demonstrar porque distintas posições morais convergem sobre esta norma. A este respeito é interessante ler as palavras de Rui Medeiros e Jorge Pereira da Silva no Comentário ao artigo 24.º da Constituição "as soluções legislativas isentas de laivos paternalistas - isto é, que reconheçam a cada uma das pessoas a faculdade de renunciar aos seus direitos fundamentais, no pressuposto de que o fazem de forma consciente, informada e voluntária -, sempre permitirão a subsistência de dúvidas sérias sobre a natureza verdadeiramente livre e racional da decisão contra natura de por termo à própria vida , quer porque tomada por um doente terminal em grande sofrimento, quer porque adoptada num momento distanto por meio de um testamento em vida. Trata-se de um domínio em que todas as garantias de autenticidade da declaração parecem ser escassas" (Jorge Miranda / Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª edição, 2010, p. 539), mas mais adiante prosseguem explicando que "da circunstância de um direito fundamental como o direito à vida constituir uma condição sine qua non de todos os demais direitos, não decorre de forma necessária a sua permanente superioridade axiológica sobre os restantes direitos, bem podendo entender-se que apenas a vida compatível com a liberdade é objecto de pleno reconhecimento constitucional - o direito à vida compreenderia, nesta acepção a faculdade de dispor dela livremente, escolhendo, se for caso disso, a própria morte" (idem, ibidem, p. 540).
Mas, se aceitarmos não existir, no plano jurídico, um dever de viver, caso o titular de um bem vida queira por-lhe termo mas queira fazê-lo por intermédio de um terceiro, deve esta morte ser considerada violadora do artigo 24.º da Constituição ou pelo contrário deve ser considerada um exercício, ainda que por intermédio de outra pessoa, do direito à dispor da vida e, como tal, por-lhe termo?
Dir-se-ia que, tal como está formulado o artigo 24.º e podendo o titular dispor diretamente do seu bem vida, a proibição de violar o bem vida por um terceiro, mesmo que por vontade do seu titular, é clara. Mas, quanto a nós, já não o será, se o titular não puder, em caso algum, exercer a sua vontade e por termo à sua vida. Nesse caso, se for possível demonstrar que o titular não podia nem poderá dispor da sua vida e pretende de forma clara, autónoma e esclarecida por-lhe termo, então caso um terceiro queira assegurar, indiretamente, a vontade do titular, ele estará, nos termos da Constituição, a assegurar exercício livre da vontade do titular, impedindo que se verifique um dever de viver e assegurando que a vida é exercida nos termos da vontade racional do titular. Numa aceção estóica, de acordo com a natureza.
Prosseguindo esta linha de raciocínio parece confirmar-se que o problema torna-se então de fiabilidade epistémica. O exemplo da votação na generalidade, que teve lugar no Parlamento, na passada quinta-feira, dia 20, parece confirmá-lo: uma maioria aprovou todos os projetos no sentido de descriminalizar o suicídio assistido e o que separa cada um destes projetos na discussão que se seguirá na especialidade é o procedimento para conseguir um nível de garantia, espistemologicamente aceitável, sobre i) a vontade de um sujeito querer morrer (incluindo não estar em erro sobre os motivos para o pretender) e ii) a perceção de um segundo sujeito (em regra, um médico) sobre a vontade do primeiro sujeito e o estado de saúde (física e mental) em que ele se encontra. É por isso um problema de conhecimento e de nível de fiabilidade desse conhecimento (relembrando aliás a primeira parte do terceiro elemento da fórmula do peso de Alexy) do qual se retiram consequências jurídicas e, para muitos, morais. Por um lado procura fixar-se um nível de conhecimento que permita aceitar-se a vontade de quem quer morrer e por outro procura-se um nível de conhecimento que permita ao terceiro decidir se deve tomar a vontade do titular não só como clara e esclarecida, mas como aceitável para si.
Porém, em nenhum dos projetos se exige que o titular esteja incapaz de dispor livremente da sua vida e de lhe por termo, o que seria consentâneo com a proteção da sua auto-determinação sem envolver a proibição de violação dos bens vida dirigida a terceiros. Os cinco projetos prevêem como critérios para que um terceiro possa por termo à vida de um outro sujeito i) a expressão da sua vontade livre e autónoma e ii) situações irreversíveis de sofrimento extremo. Parece ter-se como pressuposto nestes casos que o titular ainda que pudesse por termo à sua própria vida não o saberia ou poderia fazer de forma tão eficaz e tecnicamente indolor quanto um profissional de saúde e daí também todos os projectos exigirem a intervenção de um médico. Este pressuposto é analógico ao pressuposto de que apenas a incapacidade do próprio titular colocar termo à sua própria vida pode justificar a exclusão do âmbito de aplicação do artigo 24.º? É duvidoso e, no limite, dependente de um juízo interpretativo sobre o artigo 24.º que poderá levar, com grande probabilidade, a considerações morais dos juízes do tribunal constitucional e dos 230 deputados à Assembleia da República (no caso da confirmação do diploma pela AR após uma eventual decisão de inconstitucionalidade, nos termos do n.º 2 do artigo 279.º da CRP). Pela minha parte, admito que em situações medicamente comprovadas de sofrimento extremo, que retirassem capacidade ao titular para colocar termo à sua própria vida de forma eficaz e indolor, esta situação deve integrar a possibilidade de colocar termo à própria vida por intermédio de intervenção de um terceiro, no caso um profissional de saúde que assegure as duas exigências referidas supra. Neste caso novamente se demonstra o problema epistemológico, que é multipolar. Ele começa por ser i) um problema de fiabilidade epistêmica na determinação da aceitação jurídica dos critérios para a despenalização e prossegue como ii) um problema de fiabilidade epistêmica para o titular que apenas pretenda recorrer a terceiro se souber que está perante uma situação irreversível, sucede como iii) um problema de fiabilidade epistêmica sobre o consentimento informado do titular e o seu grau de sofrimento e, finalmente, será relevante como iv) um problema de fiabilidade da informação prestada a quem possa levantar a responsabilidade penal do médico (e este será um problema importante pois permitirá evitar ou tornar o regime jurídico numa perpétua forma de responsabilizar penalmente todas as aplicações de uma lei que, tendo passado todos os testes epistêmicos anteriores tivesse levado a uma morte nos seus termos).
[aditado a 24.02.2020]
Quando me refiro à grande probabilidade de verificação de um juízo moral, quer pelos juízes do Tribunal Constitucional, quer, eventualmente, pelos deputados à Assembleia da República, não estou a aderir a uma tese jusnaturalista, no âmbito da sempiterna discussão sobre as condições de validade do Direito. Partilho da convicação de que o Direito resulta de factos sociais que instauram uma dada ordem normativa assente na aceitação de um dada autoridade normativa (ou várias, se conjugarmos legislador e juiz). Mas mesmo com este entendimento pode aceitar-se que o direito, devido à sua estrutura, abre por vezes a possibilidade de que o intérprete decisor possa recorrer a juízos morais. Uma das dessas possibilidades diz respeito à linguagem utilizada pelos enunciados normativos. Se procurarmos saber que norma resulta da combinação do artigo 24.º da Constituição com o princípio da dignidade da pessoa humana contida no artigo 1.º da CRP, é difícil afirmar que os juízes (ou mesmo os deputados no caso acima referido) não farão apelo a juízos morais. Por mais que se afirme que existe um conceito jurídico de "dignidade da pessoa humana" não vejo como é possível dizer-se que esse conceito não convoca, ainda que parcialmente referências morais, e que, por isso mesmo, permite ao intérprete confrontar-se com essas razões morais quando tem de interpretar o seu sentido.
[fim de edição]
De um ponto de vista jurídico, da determinação da compatibilidade de regimes jurídicos que permitam a eutanásia, como os cinco projectos aprovados na generalidade no Parlamento, com a Constituição parece-me impossível, dada a formulação do artigo 24.º, não haver uma apreciação moral dos diplomas. No quadro desta apreciação será determinante a variedade de posições morais que possam existir e o lugar que cada uma delas reconheça à importância da fiabilidade epistémica e à possibilidade de, através da fixação de patamares determinados cientificamente, poder justificar-se o exercício da vontade do sujeito por intermédio de um terceiro. Ou seja, é perfeitamente possível que alguém que admita que o artigo 24.º permite ao titular do bem vida por fim à sua vida não consiga encontrar um patamar satisfatório de confiança epistémica para admitir que um terceiro poderá também fazê-lo nos termos pretendidos pelo titular. No limite isto significa que para estes decisores a questão será, para além de moral, num primeiro momento, de confiança no conhecimento que a ciência nos pode dar sobre a expressão da vontade livre e sobre o estado de saúde de um sujeito. É uma reflexão sobre a confiança na ciência tão ou mais difícil do que o juízo moral. O problema epistemológico torna-se aqui fundamental e até um pouco opressor. Desde logo porque haverá tendências para contestar que todos os pressupostos a definir possam atingir um grau aceitável de fiabilidade epistémica. O peso sobre a medicina será enorme mas só ela poderá permitir responder juridicamente àqueles que moralmente aceitem a eutanásia. Ao deferir-se legalmente a fixação desse patamar de confiança para o que no momento for o entendimento científico cria-se uma nova questão de grande dificuldade: quais devem ser cientificamente os parâmetros para determinar um consentimento esclarecido, a irreversibilidade de um estado clínico fatal ou a insuportabilidade da dor. É ao direito que cabe, face ao disposto no artigo 24.º da Constituição, definir estes patamares.
Numa eventual discussão no Tribunal Constitucional para além da questão moral haverá sempre um embate epistemológico e creio que, dadas as formações dos decisores, será impossível dissociar a análise fria dos dados sobre determinação de conhecimento científico prevalente de valorações morais sobre a questão jurídica subjacente. Parece-me, ainda assim, que as exigências quanto à determinação da vontade clara e esclarecida e o estado de saúde do paciente devem ser asseguradas através não só de vários pareceres ao longo de um dado período, mas também por pareceres provenientes de profissionais de saúde não só escolhidos pelo titular do bem mas também pelo profissional de saúde que venha a por termo à vida do sujeito e por uma entidade pública de supervisão, ensaiando-se um colégio arbitral para fixar em cada caso e em cada momento a verificação dos pressupostos face ao conhecimento científico dominante.
Ainda assim basta olhar para as contemporâneas discussões sobre fixação de conhecimento científico prevalecente em vários domínios para perceber que será necessária muita frieza dos juízes do Tribunal Constitucional que, admitindo a interpretação do artigo 24.º que permite a disposição da própria vida pelo sujeito ou por intermédio de terceiro em termos que substituam uma atuação do próprio titular e quando este não a possa realizar, tenham ainda de analisar e decidir se o critério de determinação do grau de fiabilidade epistémica assegurado pelos projetos é juridicamente aceitável. Desde logo porque isto significará afirmar que o direito deve deferir nesta matéria para a ciência, uma vez superada a questão moral de partida.