Creio que há um ponto fundamental no importante artigo de Poiares Maduro sobre os limites da liberdade de expressão e sobre a função editoral dos meios de comunicação social que merece ser aprofundado. Esse ponto parte de duas afirmações do artigo que mantêm entre si uma relação capital. O ponto levantado pelas duas afirmações já foi abordado por Poiares Maduro numa entrevista anterior e coloca-se no centro de um debate que devia ser trazido da academia e da ciência para a opinião pública onde é muitas vezes esquecido ou confundido. No artigo de Poiares Maduro voltou a acontecer e creio que é importante sublinhar que discussão é essa.
PM afirma no seu artigo que:
"segundo, o reconhecimento mútuo de que ninguém é proprietário da verdade plena e absoluta e de que é através do pluralismo que chegamos [ao] bem comum"
e
"Em segundo lugar, esse controlo editorial deve conter um controlo da qualidade e veracidade dos factos invocados em suporte de uma certa opinião".
Resumindo o que penso ser o entendimento de Poiares Maduro, mas que não vejo muitas vezes difundido no espaço público da comunicação social portuguesa, há uma linha que pode e deve ser traçada entre a verdade dos factos (a veracidade sobre que escreve PM) e a verdade das opiniões.
Começa aqui a discussão que creio dever ser aprofundada. O conhecimento científico está sujeito a juízos de verdade, ainda que não imutáveis. A verdade científica está sujeita a revisão, sem qualquer dúvida. Mas o ponto crucial, que tem estado sob ataque nos últimos anos, é que a revisão da verdade científica deve ser feita de acordo com um método que demontre a possibilidade de uma determinada verdade poder ser substituída por outra. Um método ele próprio científico. Isto pode ser feito de modo mais ou menos simples, mas o método mantém-se. Simplificando podemos falar de um método científico que se opõe a tudo o resto que podemos dizer sobre esse mesmo assunto e que desde os gregos conhecemos como opinião (sem prejuízo de áreas cinzentas em que podemos encontrar opiniões mais ou menos orientadas por preocupações e metodologias científicas). Estou a falar de ferramentas como a determinação tão rigorosa quanto possível do objeto que discutimos, sobre a prova da verdade que queremos demonstrar ou rever, os modos de testar as hipóteses que pretendemos provar. Aspectos que PM refere no seu artigo e com os quais é impossível não concordar, pois são a base de toda a ciência humana e, como tal das civilizações que sobre ela se sustentam.
Nesta medida, sendo certo que a verdade científica é revisível temos o direito, e devemos ter a aspiração permanente, a nada menos do que a verdade possível. Aquela que num dado momento histórico, com o melhor método que enquanto espécie conseguirmos desenvolver e comunicar através de uma linguagem comum, for possível atingir. Ela determinará o patamar a partir do qual se fará a revisão. Mas também determina uma miríade de coisas que todos os dias damos por adquiridas e que não contestamos: desde o piano que não ficará a flutuar se o empurrarmos da janela de um décimo andar até ao avião que voará do ponto A ao B se estiver montado e a funcionar da forma planeada e nenhum fator exógeno imprevisto se fizer sentir. Toda a nossa vida quotidiana assenta simultanemente numa civilização que passa boa parte do tempo a funcionar sobre as verdades possíveis de cada momento e a procurar revê-las. A verdade científica faz querer parafrasear Vinicius de Moraes podendo dizer-se que é eterna enquanto dura.
Já aquilo que Poiares Maduro invoca como a "verdade plena e absoluta" que ninguém possui não se trata realmente de uma qualquer verdade, embora a possa ter por subjacente. Aquilo que deve justificar a existência de um pluralismo que permite atingir o bem comum é uma discussão sobre o certo e o errado e não (apenas e primacialmente) sobre o verdadeiro e o falso.
É uma discussão complicada por diversos problemas. Em primeiro lugar, obriga a uma discussão moral, assumida como tal. A política têm uma evidente dimensão moral e a busca pelo bem comum é isso mesmo. Querer transformar essa discussão numa discussão sobre o verdadeiro e o falso foi a principal razão que nos trouxe até aqui, ao mundo das fake news, do confirmation bias e outras pragas atuais. Em segundo lugar, é verdade que podemos procurar justificar as nossas convicções sobre o certo e o errado em informação sujeita a juízos de verdade e falsidade, mas os dois planos não passam a confundir-se por isso. É uma tarefa do nosso tempo impedir que isso aconteça. Uma das mais importantes.
Até podemos admitir que um jornal publique uma opinião altamente científica, quase um sumário de um estudo científico, mas temos de ter a capacidade de perceber que isso será ainda assim muito distinto de formular meras opiniões nas páginas do mesmo jornal, desde logo porque poderão não assentar numa dicotomia verdade/falsidade, demonstrada como tal mas numa dicotomia certo/errado e bom/mau. Ou seja, são moral e não ciência.
Tudo isto distinguido, creio que as duas afirmações de Poiares Maduro devem ser interpretadas como um repto a enfrentarmos dois grandes desafios do nosso tempo:
i) proteger e credibilizar a ciência;
ii) sermos exigentes com a opinião expressa no espaço público, sobretudo quando tenta passar moral (política ou de outra qualidade) por ciência (através por vezes de uma autoridade científica dos seus autores, em vez da autoridade dos argumentos em discussão no caso concreto).