Jorge Miguéis, o Senhor Eleições
Quando um amigo comum me ligou há dois dias a dar conta da morte de Jorge Miguéis, recordei imediatamente a última vez que tinha pensado nele. Há algumas semanas, o Instituto de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em parceria com a Comissão Nacional de Eleições e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no Brasil, organizaram uma conferência dedicada ao Governo do Sistema Eleitoral. O tema que me coube tratar foi o dos modelos de governo eleitoral. Ao preparar a minha intervenção li e reli boa parte da literatura sobre o tema e voltei a reflectir sobre o modo como o nosso sistema, sucessor a cinquenta anos de ditadura, tão rapidamente soube adaptar-se à nova democracia ao mesmo tempo que a tornou assim mais sólida. O nosso sistema é o que na literatura surge designado por sistema misto, com notas independentes e governamentais. Normalmente o sucesso dos modelos mistos dependente da maturidade da administração eleitoral governamental e no modo como sabe relacionar-se com a componente independente, que forma o vértice do sistema. Ao preparar a minha intervenção não pude deixar de pensar, uma vez mais, em Jorge Miguéis: era impossível não pensar que muito do que no sistema português depende da administração eleitoral governamental (historicamente no Ministério da Administração Interna) assentou no conhecimento e na experiência de Jorge Miguéis, ao longo de todas estas décadas. Ele esteve em praticamente todos os atos eleitorais de caráter nacional que se realizaram em Portugal desde as eleições constituintes de 1975 (o que é um feito impressionante tendo em conta que se realizaram eleições em Portugal todos os anos entre 1975 e 2018 exceto em 1977).
Quando cheguei à CNE em 2013, a única pessoa que sabia que ia encontrar era Jorge Miguéis. Era impossível ser jurista em Portugal, com um mínimo interesse em direito eleitoral e não conhecer Jorge Miguéis. Para mim ele era o Senhor Eleições: se se queria saber algo sobre eleições ele era a pessoa com quem falar. Num sistema de tipo misto, como o português, à CNE fica reservado um importante papel de supervisão e coordenação do sistema, desde logo garantindo o respeito pelo lugar e função de cada um dos intervenientes no sistema, mas para o braço governamental do sistema - o STAPE, a DGAI, a SGAI - no Ministério da Administração Interna fica todo o trabalho logístico, de apoio à organização efetiva de cada ato eleitoral. É uma tarefa impressionante e que passa despercebida à maioria dos cidadãos. Apercebi-me disso logo depois de acabar o curso, no início do século, quando trabalhei nestes temas, e nunca poderia adivinhar que teria a visão do outro lado do sistema quando em 2013 integrei a CNE. Essa experiência permitiu-me conhecer Jorge Miguéis e com ele muito aprender. A ideia, um pouco romântica até aí, do Senhor Eleições não estava longe da realidade. Mesmo quando discordávamos dele, eu ou outros colegas de Comissão, as posições de Jorge Miguéis obrigavam-nos a estudar, a pensar, a ponderar, pois os seus argumentos eram sólidos e sobretudo tinham a autoridade de quem há muito vivia o processo eleitoral. Nem por isso, contudo, senti alguma soberba ou arrogância. Pelo contrário, havia sempre uma discussão viva, como se fosse necessário, do seu lado, convencer todos pela primeira vez, unicamente com a persuasão dos seus argumentos.
Para além de ter aprendido muito com o Jorge Miguéis percebi o quanto o país beneficiou do seu trabalho e das instituições públicas em que trabalho e dirigiu. Para além disso pude ainda ter o privilégio de privar com ele e com as suas ideias em várias ocasiões e de com ele discutir muitos assuntos além-eleições, em que a sua mundividência enriquecia a discussão. O Senhor Eleições existiu mesmo e perdê-lo é uma enorme tristeza, mesmo para os que não o conheciam.