Pompeia Sula
Luís Aguiar-Conraria escreve hoje no Público um artigo muito interessante sobre o tema da composição governamental e, em especial, sobre a possibilidade de membros da mesma família poderem integrar o Governo. Porque a dado passo cita uma norma do Código do Procedimento Administrativo motivou-me a partilhar as minhas próprias considerações sobre o tema, que ficam restringidas a duas notas, uma de caráter jurídico e outra de caráter ético institucional ou de bom governo institucional, se preferirem.
A primeira nota prende-se com o que tem o sistema jurídico a dizer sobre a possibilidade de membros da mesma família, sobretudo com parentesco próximo, como cônjuges ou pais e filhos, poderem integrar o Governo. E importa começar por dizer que o sistema jurídico português tem muito pouco a dizer sobre o tema. Desde logo a Constituição, que prevê o Governo enquanto órgão, no seu artigo 182.º e seguintes, nada diz sobre incompatibilidades ou impedimentos dos seus membros.
Dispõe, porém, no primeiro artigo referido, que "O Governo é o órgão de condução da política geral do país e o órgão superior da administração pública". O Governo é, pois, um órgão colegial de morfologia bicéfala, algo que importá a esta nota. Tal como importa também o disposto no n.º 2 do artigo 187.º, que prevê a nomeação do membros do Governo pelo Presidente da República, sob proposta do Primeiro-Ministro. Sendo ainda de acrescentar o n.º 2 do artigo 191.º, quando se dispõe que os ministros são responsáveis perante a Assembleia da República.
Deve notar-se que a proposta do Primeiro-Ministro ao Presidente da República, acima referida, é, de acordo com a Constituição, completamente livre, o que tem levado ao longo dos tempos a doutrina constitucional a considerar que se trata de cargos de confiança política ampla, não sendo sequer necessário no nosso sistema semi-presidencial que os ministros tenham sido eleitos deputados.
Uma vez que o Conselho de Ministros para além de um órgão político é também um órgão administrativo, como prescreve a Constituição, importa perguntar se nesta qualidade existem regras respeitantes à sua composição que prevejam algo sobre membros da mesma família. Nada encontramos nas leis orgânicos dos governos constitucionais da atual República e nada encontramos noutra legislação que preveja situações de incompatibilidades e impedimentos. Assim, nem a Lei n.º 64/93, de 26 de agosto, que estabelece o regime jurídico de incompatibilidades e impedimentos dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, nem o Código do Procedimento Administrativo (CPA), que estabelece nos seus artigos 69.º e seguintes garantias de imparcialidade da atividade administrativa, prevêem qualquer regra que se aplique especificamente aos casos em apreço. Isto não significa que o Código do Procedimento Administrativo não possa em concreto aplicar-se. Tanto os impedimentos como as escusas e suspeições podem aplicar-se no contexto de decisões governamentais em que integrem o órgão membros de uma mesma família. Mas o CPA aplicar-se-á em virtude não da simples integração de membros da mesma família no Governo, mas porque um dos membros da família é destinatária de uma decisão do Governo. Se a interpretação dos artigos do CPA referente aos impedimentos e às escusas e suspeições fosse no sentido de considerar que a presença de membros da mesma família num órgão colegial só por si faria com que um dos membros (do órgão e da família) tivesse interesse na votação no sentido por si desejado (o que é natural), levando a que o outro membro (do órgão e da família) votasse nesse sentido para o agradar e/ou como forma de futuramente ser compensado em igual sentido, assim prejudicando a sua imparcialidade, então as regras do CPA pura e simplesmente impediriam qualquer relação de proximidade que fizesse levantar esta suspeita.
Tanto quanto sei na doutrina administrativista portuguesa não há autores que defendam que as normas do CPA respeitantes aos impedimentos se aplicam à composição dos órgãos mas tão-só à circunstância em que, no caso de órgãos colegiais (note-se que a norma é aplicável também aos titulares de órgãos unipessoais), o órgão deva decidir sobre um caso que envolva, enquanto destinatário da decisão (e não como seu co-autor), um membro da família de um dos titulares. Mas admito estar enganado e nesse caso gostaria muito de conhecer essa doutrina e os seus argumentos para sustentar tal interpretação dos artigos 69.º e seguintes do CPA.
Mas significa isto que o legislador ignorou as razões invocadas, por exemplo por Aguiar-Conraria, contra a integração de membros da mesma família no Governo? Parece-me que não. Reconheceu que tais razões existem mas que devem ser ponderadas face a razões de sentido inverso, nomeadamente a não restrição da liberdade política que no nosso sistema é conferida ao Primeiro-Ministro e ao Presidente da República na escolha e nomeação dos ministros. Ora há bons argumentos jurídicos para sustentar que tais preferências, como as acima referidas, que podem resultar da integração de familiares próximos num determinado órgão administrativo, e muito em especial, no Governo, podem ser eliminadas ou fortemente mitigadas. Apresento os três que me parecem mais importantes: a colegialidade, a nomeação dos membros do Governo pelo Presidente da República e a possibilidade de demissão, por este, do próprio Governo.
Note-se que a nomeação pelo PR é um primeiro mecanismo de controlo de possíveis problemas provocadas pela relação de parentesco, cabendo ao Presidente não proceder à nomeação se entender que esta oferece riscos que ultrapassam as vantagens da liberdade política de indicação dos ministros pelo Primeiro-Ministro. É certo que pode responder-se com o argumento de que, constituindo a relação de parentesco um perigo abstracto, sempre o Presidente da República teria que não nomear e isto resolveria a questão. Ainda que se aceite este argumento, não se compreende então por que razão não adotou o PR essa conduta não nomeando membros da mesma família nos casos em que tal já ocorreu.
Mas o argumento que impressiona mais é o da colegialidade. Uma das razões para a colegialidade, para além da representatividade e qualificação da decisão é o de assegurar uma maior resistência à captura do órgão por interesses exteriores e interiores que não os interesses que devem guiar o órgão, no caso, o interesse público. Ora, o Governo é composto, em regra, por mais de uma dezena de membros (atualmente é composto por 16 membros), sendo que todos discutem e votam as suas decisões. É certo que o fazem no quadro das relações que unem cada um dos membros entre si e muito especialmente que os unem ao Primeiro-Ministro, perante o qual são responsáveis, mas esta circunstância, novamente, só demonstra que as relações de parentesco oferecem um grau de risco semelhante a qualquer relação de proximidade entre membros do Governo, órgão que como se viu, pode ser integralmente composto por pessoas da confiança política (e logo pessoal) do Primeiro-Ministro.
Por último o Presidente da República caso considere que as relações de parentesco estão a promover os perigos de parcialidade nas decisões do Governo ou mesmo de corrupção, pode simplesmente lançar mão da drástica medida de demitir o Governo. Em Portugal nem sequer é inédito um Presidente lançar dos seus poderes de controlo sobre o Governo e o Parlamento numa matéria relacionada com um ministro, embora nesse caso concreto o ministro já se tivesse demitido e só posteriormente o Presidente tenha decidido, em parte por isso, dissolver o Parlamento.
Não havendo normas jurídicas que impeçam a integração de membros da mesma família no Governo e em órgãos administrativos colegiais em geral, fica ainda assim a questão de saber se não existe uma imposição de ética política, de ética institucional, de bom governo institucional que deva levar, se não a uma alteração do quadro jurídico, pelo menos a uma auto-restrição por parte do Primeiro-Ministro e do Presidente da República na nomeação de membros da mesma família para o Governo. Já não estamos aqui no campo do direito constituído e isso leva-nos à segunda nota.
As razões apontadas por Luís Aguiar-Conraria, entre outros, são razões persuasivas. Não restam dúvidas que relações de parentesco criam a dúvida sobre se um titular de um órgão colegial acompanha o sentido de voto proposto por um seu familiar apenas quando entenda que é o melhor para o interesse público. Isso é aliás extensível a qualquer relação de proximidade afetiva e relacional, sendo presumido no caso dos laços de parentesco. E aqui começam os problemas. Sendo certo que toda a qualquer relação de proximidade dos membros de um órgão colegial pode levar a deferências mútuas para a aprovação de medidas propostas pelos membros que são próximos, todo e qualquer órgão em que tais relações existissem ficaria impedido de se compor e funcionar. Seria virtualmente impossível ter órgãos com nomeações de confiança política e mesmo nos demais, se em resultado das nomeações ou designações se verificassem situações de parentesco ou de grande proximidade relacional o órgão teria de ser recomposto. Claro que pode argumentar-se que há mecanismos que podem mitigar este entendimento, desde logo um que é referido por Luís Aguiar-Conraria no seu artigo, o dever de fundamentar a escolha de alguém como titular de um órgão colegial que já integra um membro da sua família. Mas novamente a fundamentação pode ser a simples confiança política, algo que recorde-se é admitido pela Constituição ao permitir a proposta pelo Primeiro-Ministro de qualquer nome por si desejado. Podemos pensar noutros mecanismos, como, a priori, obrigar a que os ministros sejam escolhidos apenas de entre deputados, com isso levando a que tais escolhas tenham pelo menos passado pelo crivo prévio da escolha política para integrar as listas de deputados, ou, a posteriori, dando ao processo legislativo governamental a mesma transparência que tem hoje o processo legislativo parlamentar. Mas mesmo sendo estas medidas interessantes seriam insuficientes para aqueles que clamam pelo perigo extremo das relações de parentesco pois continuariam a permitir uma grande margem de liberdade de escolha por parte do Primeiro-Ministro, que não é argumento bastante para superar os perigos do parentesco.
Assim, ainda que com todos estes mecanismos, sempre se poderia contra-argumentar que o perigo abstracto colocado pela presunção de que membros da mesma família se poderiam apoiar um no outro para conseguir aprovar medidas contrárias ao interesse público é de tal modo elevado que o sistema pura e simplesmente não pode admitir tal situação, devendo haver um sacrifício de um dos membros da família em prol da mulher de César. Ora, não estando esse sacríficio obrigado por lei (e nada impede que venha a estar) a questão coloca-se no plano da ética política e essa, na ausência de auto-regulação governamental, nos mecanismos da sua avaliação. Ora, essa avaliação é feita nas urnas, não me parecendo que seja possível demonstrar que é mais importante o perigo abstracto colocado por uma relação de parentesco do que a bondade da escolha tal como entendida pelo Primeiro-Ministro e caucionada pelo Presidente da República.
E o que nas urnas se terá de ponderar é se é mais importante o perigo abstracto de parcialidade nas decisões do Governo que integram membros da mesma família ou a manutenção da liberdade política do Primeiro-Ministro e do Presidente da República para escolherem e nomearem os ministros que entendam melhores para os cargos. Não é uma escolha fácil até porque parte inquinada: o ambiente atual é o de que a escolha de membros da mesma família é intuitivamente má (mesmo que não se consiga demonstrar em concreto no que isso se traduz) enquanto a bondade da livre escolha política fica paradoxalmente obrigada a responder perante critérios de adequação às funções que se traduzem numa limitação da liberdade de escolha, que pode perfeitamente num sistema político-administrativo como o nosso assentar na preferência por pessoas em quem se confie da perspectiva da condução e gestão política de certas matérias ainda que sem conhecimento profundo sobre os seus aspectos técnicos. Se isso implica nomear duas pessoas da mesma família não parece que exista aqui uma razão para auto-restrição do Primeiro-Ministro, mas para sujeição dessa ponderação feita pelo Primeiro-Ministro ao escrutínio dos eleitores. Ou seja, tal escolha, pelo perigo abstracto que pode representar, mas também pelo exercício da liberdade política que manifesta e a qual os eleitores implicitamente admitem nos termos da Constituição como boa para a prossecução do interesse público, parece só poder ser controlada e avaliada (para além dos mecanismos que já referi acima) pelos eleitores, a posteriori. Devem ser eles a decidir se Pompeia é ou não inocente ou se isso é irrelevante.