Portugal e Brasil entre eleições
A democracia é um sistema político a posteriori. Não há líderes predestinados. E mesmo que saibamos muito dos candidatos nunca sabemos o que vão fazer quando tiverem poder efetivo. Isso torna a democracia fascinante mas também frágil. Desafiante mas também cansativa. Tucídides bem o mostrou, especialmente em períodos de crise. Mas realmente, como gostamos de parafrasear com Churchill, ainda não se encontrou nada melhor. Aliás, até os defensores de regimes anti-democráticos acabam vergados a ela, ainda que na esperança de a tentarem vergar. A história demonstra que o exercício do poder em democracia é difícil de antecipar. Mas, os eleitores são chamados a tentá-lo pois só assim o sistema funciona. Escolha essa que muitas vezes só é apreendida após o exercício do próprio poder democrático. Todos os mandatos de novos representantes são tirocínios da nossa própria capacidade de escolher e do sistema democrático.
Daqui a um ano será feito o juízo político sobre a denominada Geringonça. Pela primeira vez desde o início de vigência da Constituição de 1976 há um Governo das esquerdas democráticas. Não é uma coligação formal e não foi antecipada. Pelo contrário, muitos achavam-no impossível (eu incluído). Mas aconteceu e não foi algo em que os eleitores tenham votado. Votaram apenas na sua possibilidade, legitimaram o sistema que o permitiu. Mas há diferenças entre os vários partidos de esquerda, como há entre os dois principais partidos da direita democrática. Pela primeira vez, em 2019, poderemos votar escrutinando o exercício do poder por parte de um Governo de esquerdas, como já tiveramos oportunidade de fazer para um exercício semelhante à direita. Num país com um histórico de maior diversidade político-partidária à esquerda (que embora dê sinais de mudança, ainda está longe de acontecer) a avaliação que se fará em 2019, de algo tentado pela primeira vez 40 anos depois do 25 de abril e quase 40 anos depois da Constituição de 1976, é também ela histórica. Mais histórica aliás, no meu entender, do que a própria Geringonça. Esta foi uma criação dos partidos mais do que dos eleitores, o juízo de 2019 sobre a Geringonça será deles. Uma maioria absoluta do PS dirá algo, um reforço da esquerda pulverizada dirá outra, uma vitória do PSD, coligado ou não com o CDS, dirá outra bem diferente. Mas 2019 será sempre o ano do escrutínio sobre a geringonça e por isso um ano de maturidade (mesmo que não percebida já) do nosso sistema político. Em sistemas de tipo proporcional como o nosso, destinados a permitir os pequenos partidos, a existência de coligações é um tónico. Permite a estabilidade governativa ao mesmo tempo que enriquece a diversidade (e, espera-se, a qualidade) das propostas e do debate político.
Antes da geringonça houve quem prefigurasse o caos, mas, a um ano de completar-se a sua legislatura, pelo menos a democracia mantém-se estável, nos carris de um programa político alternativo ao do anterior Governo, em sinal de possibilidade e respeito por opções existentes no espectro político. Os eleitores do que foi depois a Geringonça não votaram nisto mas só daqui a um ano saberemos se não desejaram isto (com todas as vicissitudes dos 4 anos de uma legislatura). A democracia tem esta característica: por mais que se apele a um juízo de prognose para chegar ao poder é difícil superar o juízo de balanço do exercício do poder. E talvez esteja aí a sua maior força e a explicação da sua durabilidade.
No Brasil, o juízo de prognose parecia mais fácil. Por tudo o que se sabe de Jair Bolsonaro, eis um candidato que só estará a utilizar a democracia constitucional para a diminuir e afastar. Mas não só esse juízo de prognose é difícil, como fraqueja contra o juízo de balanço do que veio antes. É sempre um confronto cruel, para mais agudizado por novas forma de campanha que dificultam obter informação clara para um juízo de prospetiva (e mesmo de balanço). E assim ganhou Bolsonaro. Começará também em 2019, logo no seu primeiro dia (senão antes, simbolicamente) a formar-se o juízo de avaliação do seu exercício de poder na democracia brasileira. Democracia essa que fez a parte dela: manteve-se viva para permitir a escolha, a escolha que levou Bolsonaro ao poder. Agora é chegada a hora de olharmos para a forma como nela o poder será exercido e como irão os eleitores ajuizar esse exercício de poder. A democracia pode surpreender-nos uma vez mais ou sucumbir, como muitas vezes aconteceu. Mas em qualquer caso não será porque não deu uma hipótese a todos. E isso é algo que todos os democratas devem levar em conta. Quer para juízos de prognose, quer para juízos de balanço. Até porque estes últimos são políticamente mais fortes em idade de fake news. E não devemos ter medo de aceitar as regras do jogo democrático. Assim como não podemos hesitar se for necessário fazê-las cumprir quando alguém quiser destruir a democracia. Mesmo que a maioria o queira. A democracia não reina sozina, reina no quadro de uma Constituição e Constituição significa estrutura e equilíbrio. Respeito pelas regras totais, de minorias e maiorias, que permitem que estas últimas se formem, diluam, mudem e refaçam. Uma dada maioria, numa democracia constitucional, nunca tem a última palavra, nem um mandato de supremacia. Tem apenas o mandato de um dado possível no quadro da Constituição. Pelo menos até que uma maioria se arvore em maioria maior, constituinte. E isso raramente corre bem quando é feito contra os direitos da minorias. Neste aspecto o exemplo americano da Venezuela é já uma certeza do que no Brasil é só receio. Espero que o exercício da democracia brasileira o dissipe.