O financiamento do setor social em Portugal e a importância da Contratação por Resultados
A propósito da discussão sobre o aumento do salário mínimo nacional e do seu impacto sobre as Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS), o Diário de Notícias tem hoje uma notável peça, que é também, e sobretudo, uma peça sobre o financiamento do setor social em Portugal e o que isso nos diz da sociedade portuguesa.
Atentemos nesta passagem da peça:
Ao nível das despesas, o apoio estatal fica próximo de cobrir os custos com vencimentos - "cerca de 55% das despesas" - mas deixará de o fazer após a entrada em vigor no novo salário mínimo.
As restantes fontes de financiamento das IPSS são "as comparticipações dos utentes, que representam mais de 50%, e a filantropia, que cobre 6% a 7% dos orçamentos" .
Nestes dois parágrafos está toda uma reflexão à espera de acontecer, sobre o modo como os serviços sociais são e devem ser prestados na sociedade portuguesa.
Como fontes de financiamento das IPSS, a Confederação das Instituições de Solidariedade Social (CNIS) indica a seguinte repartição:
Estado: 54% (estimativa com base na peça)
Utentes: 52% (estimativa com base na peça)
Filantropia: 6%
O que me interessa nesta repartição é o confronto com este quadro:
Este quadro diz respeito a todo o Terceiro Setor, e não apenas às IPSS (embora estas componham a maior parcela do Setor), e além disso reflete a realidade apenas até 2010, enquanto as afirmações do Presidente da CNIS dizem respeito, provavelmente, a 2015 (na conta satélite com dados referentes a 2013 não consegui encontrar estes mesmos dados). De todo o modo, a proporção da repartição entre as três principais formas de financiamento do Terceiro Setor mantém-se, só variando os valores. Em 2010 a fonte de financiamento mais expressiva era o Estado, seguido dos rendimentos de serviços e bens e só depois a filantropia. Hoje a relação entre as receitas provenientes do Estado e de bens e serviços prestados parece estar mais equilibrada, sobretudo à custa do aumento dos valores cobrados, mas há uma fonte de financiamento que até se reduziu e que em 2010 já estava 12% abaixo da média da OCDE. Refiro-me à filantropia.
Se por um lado, num quadro de crise é compreensível que as transferências privadas para o Terceiro Setor se retraiam, a verdade é que esta é uma variável que se tem mantido em valores muito baixos desde sempre. Portugal não tem, nem tem sabido criar, uma cultura de filantropia ou, talvez mais importante, de investimento social.
Outra explicação pode ser ideológica. A flutuação das proporções no cômputo geral das fontes de financiamento do Terceiro Setor tem muito que ver com o tipo de políticas públicas dirigidas ao Setor. Tradicionalmente em Portugal, quer à esquerda, quer à direita, o Estado tem apoiado o Terceiro Setor, o que em grande parte explica que a sociedade civil não se sinta motivada a fazê-lo. Este aspeto, acrescido ao fator anterior, de inexistência de uma cultura de forte filantropia e investimento social, explica em parte o cenário de fontes de financiamento do Terceiro Setor e das IPSS em particular. Deve este cenário mudar? A pergunta pode parecer falaciosa. Se uma das explicações é ideológica, a resposta dependerá da posição em que nos encontremos nesse espetro. Mas como expliquei, a verdade é que à esquerda e à direita tem havido sempre um apoio forte do Estado ao Terceiro Setor, quando seria de esperar que a esquerda apoiasse menos o setor, canalizando os recursos para os serviços públicos do próprio Estado e a direita apoiasse também menos esperando que a sociedade civil assumisse a sua função. Então qual a explicação dos valores apresentados?
À esquerda a explicação é, pelo menos, dúplice. Num primeiro momento histórico, pós-revolução, a explicação é bastante simples: criou-se na Constituição um Estado Social que não existia no país exceto se se contasse com o Terceiro Setor. Isto levou a um fenómeno de nacionalização sui generis dos hospitais das Misericórdias (que até hoje estão no Estado) e ao início do movimento de contratação das instituições particulares de solidariedade social (desde logo inventando a figura em 79/83) e depois consolidando as relações entre o Estado e estas instituições ao longo das últimas décadas. Mais recentemente, embora a primeira razão se mantenha válida, pois o Estado está longe de poder dispensar o Terceiro Setor da rede de serviços públicos sociais, sendo uma relação completamente diferente do que acontece na Educação ou na Saúde, surgiu uma segunda razão: em alguns casos o Estado determina que a prestação por IPSS é mais eficiente do que aquela que naquele momento conseguiria assegurar diretamente. Esta opção por contratar serviços públicos sociais a instituições privadas parte muito mais de uma análise cuidada dos custos desses serviços e das vantagens que os particulares possam trazer à sua prestação do que da simples constatação de que o Estado não pode prestar o serviço ou que já existe alguém que sempre o tem feito ao longo dos séculos. Se estas duas últimas razões devem ser afastadas logo que possível da decisão de políticas públicas pela sua irracionalidade, a primeira é um bom fundamento de políticas públicas, sobretudo se do lado do Estado a decisão de contratar instituições particulares for baseada na determinação dos resultados que se pretendem atingir com os serviços públicos sociais e na maior eficiência que as instituições particulares possam trazer na obtenção desses resultados. Esta forma de conduzir políticas públicas, paralela e complementar à prestação direta, tem conhecido grande expansão nos último anos um pouco por todo o mundo ocidental, sob o nome de Contratação por Resultados (Outcomes Based Commissioning) existindo até já dois Laboratórios que estudam as melhores formas de determinar e assegurar os resultados pretendidos pelas políticas públicas: o Government Performance Lab da Harvard Kennedy School e o Government Outcomes Lab da Blavatnik School of Government da Oxford University (puxando a brasa à minha sardinha, é tempo da Universidade de Lisboa pensar em criar um Colégio com este tipo de atribuições e com o apoio da Presidência do Conselho de Ministros, à semelhança do que acontece com as congéneres americana e britânica).
À direita à explicação é também dúplice. Desde logo o facto de alguma direita ser composta pela democracia-cristã aproxima-a naturalmente de boa parte do Terceiro Setor e das IPSS, muitas delas católicas ou de inspiração católica. Além disso, e pela mesma razão, há uma visão caritativa que uma certa linha ideológica de direita preconiza que é conforme ao tipo de atividade que algumas instituições do Terceiro Setor desenvolvem, o que justificaria que se canalizem recursos públicos para este setor. A segunda razão é a mesma segunda razão que justifica à esquerda o financiamento público do Terceiro Setor. Isso mesmo pode ser compreendido na transição pacífica e proveitosa que a Estrutura de Missão Portugal Inovação Social empreendeu desde a sua criação em boa altura por Miguel Poiares Maduro até à atual tutela de Maria Manuel Leitão Marques. Esta entidade tem por missão incentivar e desenvolver em Portugal, a partir de fundos da União Europeia e dotações do OE, um ecossistema de investimento social. Deixando de lado, a parte do investimento social de origem privada, podemos assim compreender que existem diversas razões para que, não obstante a flutuação ideológica dos Governos, o Estado tenha mantido quase constante o seu predomínio como financiador do Terceiro Setor.
Se é verdade que o predomínio do financiamento público ao Terceiro Setor pode desincentivar alguma filantropia e investimento social, é também verdade que isso não pode explicar o baixíssimo nível de apoio da sociedade civil portuguesa e das suas instituições ao Terceiro Setor. Como disse é, sobretudo, um problema cultural, ainda antes de ser um problema financeiro. Essa mudança de cultura está a ser operada por diversas instituições como a Fundação Gulbenkian, o Laboratório de Investimento Social, o Instituto de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e, evidentemente a própria estrutura de missão Portugal Inovação Social, entre muitas outras. Mas é um esforço que precisa de ser muito mais vigoroso. É preciso que a proporção de apoio privado ao Terceiro Setor seja maior, mas sobretudo, melhor. Ou seja que se saiba para onde vai o dinheiro, se tenham resultados claros a atingir com esse dinheiro e se meçam os resultados que esse dinheiro permitiu obter. Isto dá muito mais trabalho do que a filantropia clássica mas também pode produzir resultados muito mais recompensadores.
Para terminar e voltando à peça do DN e ao problema do peso do aumento do salário mínimo nas fontes de financiamento das IPSS. Como não se espera que o problema cultural que aqui abordo se resolva nos próximos anos (mas tem que se trabalhar continuamente para isso) a verdade é que a solução só pode vir de uma das outras duas fontes de financiamento: o pagamento pelos utentes ou as comparticipações do Estado. Dada conjuntura económica não é difícil antecipar que o reforço terá que vir do lado do Estado. Mas tendo em conta a orientação ideológica também não é difícil antecipar que uma maior comparticipação pública implicará, dada o origem tributária do dinheiro, uma fiscalização mais apertada do cumprimentos dos padrões de serviços público a que as IPSS ficam obrigadas por assumirem um compromisso com o Estado. É aqui que se revela a dimensão especialmente importante do Outcomes Based Commisioning que referi acima e a existência de resultados claros a atingir com os serviços públicos contratados e métricas objetivas e rigorosas para os avaliar. É fundamental que do lado do Estado exista bom contract management no que diz respeito aos serviços públicos sociais. É o que historicamente explica, em boa medida, os contratos do Estado que correm bem e os que correm mal.