Para uma melhor regulação do tratamento jornalístico das candidaturas
A lei que regula o tratamento jornalístico das diversas candidaturas é de 1975. Trata-se do Decreto-Lei n.º 85-D/75, de 26 de Fevereiro.
Ainda antes da Constituição vigente, o legislador revolucionário, em tempos conturbados de afirmação das liberdades fundamentais, aprovou um diploma legal em que logo no n.º 1 do artigo 1.º se prevê que deve haver:
"um tratamento jornalístico não discriminatório às diversas candidaturas, em termos de as mesmas serem colocadas em condições de igualdade".
Uma vez que o conceito de igualdade é um dos mais controversos conceitos desenvolvidos pelo ser humano, o legislador de 75 acrescenta no n.º 2 que:
"[e]sta igualdade traduz-se na observância do princípio de que às notícias ou reportagens de factos ou acontecimentos de idêntica importância deve corresponder um relevo jornalístico semelhante, atendendo aos diversos factores que para o efeito se têm de considerar".
Muitos portugueses não conhecem esta lei. Não sabem que existe. Não sabem que foi o legislador que criou esta regra, que definiu este critério de tratamento jornalístico. O legislador, em nome dos seus representados.
A lei, que está em vigor, diz aliás muito mais coisas, de forma minuciosa e detalhada, como se podem ver nos artigos 2.º, 3.º, 4.º, entre outros. A título de exemplo, veja-se o artigo 8.º:
É expressamente proibido incluir na parte meramente noticiosa ou informativa regulada por este diploma comentários ou juízos de valor, ou de qualquer forma dar-lhe um tratamento jornalístico tendente a defraudar a igualdade de tratamento das candidaturas.
A lei cria pois muitas obrigações para os meios de comunicação social, decorrentes do entendimento legislativo da tratamento equitativo das diversas candidaturas, em linha com o que viria a ficar previsto na Constituição, um ano mais tarde, na alínea b) do n.º 3 do artigo 113.º:
As campanhas eleitorais regem-se pelos seguintes princípios:
b) Igualdade de oportunidades e de tratamento das diversas candidaturas.
A quem entendeu o legislador de 75 entregar a verificação do cumprimento das disposições de lei que tenho vindo a referir?
1. Em primeiro lugar às candidaturas, como prevê o n.º 1 do artigo 12.º;
2. Em segundo lugar, para apreciação das reclamações das candidaturas, a uma entidade independente maioritariamente eleita pelo Parlamento e presididida por um Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça - ou seja, à Comissão Nacional de Eleições;
3. Em terceiro lugar, ao Ministério Público, para onde a CNE pode enviar as reclamações que entenda procedentes, para que o Ministério Público possa dar seguimento ao que for da sua competência; e
4. Em quarto lugar, evidentemente, aos tribunais, como decorre deste sistema.
Fosse qual fosse o sistema de controlo criado assegurar o cumprimento da lei de 1975, face ao que o legislador preceituou em termos de deveres no âmbito da cobertura jornalística das candidaturas, sempre o Ministério Público e os Tribunais seriam chamados a pronunciar-se. Já a intervenção da CNE, que é claramente destinada a fazer uma triagem especializada e qualificada das reclamações para filtrar a necessidade de intervenção do Ministério Público, poderia ser excluída (sobrecarregando o Ministério Público com as centenas de queixas que a CNE recebe em cada processo eleitoral) ou ser substituída, por exemplo, por um órgão regulatório, nos moldes do que foi criado recentemente no Reino Unido para a imprensa - IPSO - cujos membros são maioritariamente não oriundos da imprensa ou do que aí existe para as televisões - Ofcom - que aplica um Código de Transmissão Mediática que contém uma série de deveres a observar pelos media.
Dito isto importa distiguir as várias discussões que podemos ter quanto ao cenário português, sendo certo que todas elas estão prejudicadas por estarmos já muito perto das eleições legislativas e a sensibilidade da matéria recomendar algum distanciamento quanto ao seu objeto.
1. Divergências quanto ao que está disposto na Constituição
Mesmo que eliminassemos toda a legislação ordinária em matéria de cobertura jornalística das candidaturas, sempre teríamos a possibilidade de as mesmas poderem ir para tribunal questionar quais discriminações que entendessem ter sofrido durante a campanha eleitoral. E sempre caberia aos tribunais responder, criando jurisprudência que enquadrasse o entendimento de "igualdade de oportunidades e de tratamento das diversas candidaturas". Esse é por isso um problema próximo, mas distinto do problema regulatório.
2. Divergências quanto ao que dispõe a lei ordinária, em especial a lei de 1975
A lei tem servido bem nos últimos 40 anos. Os problemas recentes que se têm levantado, apesar das inúmeras queixas por discriminação dos media em atos eleitorais, foram causados por decisões judiciais respeitantes a debates e não pela atuação de entidades reguladoras, seja a ERC ou a CNE (ao contrário do que muitas vezes se diz a CNE não obriga a qualquer aplicação igualitária formal da lei, como se pode ler aqui na sua última deliberação sobre o tema). Daí que o problema esteja circunscrito a questões específicas em que a interpretação da lei faz toda a diferença e onde, como tal, é recomendável que exista algum tipo de enquadramento, de linhas de orientação, de boas práticas. Públicas e facilmente acessíveis por todos. E aqui encontramos a grande questão que todos os países democráticos tendem a resolver com uma combinação de medidas auto- e hetero-regulatórias: quem deve fornecer essas linhas de orientação?
Num dos extremos do espectro teórico temos a hipótese de todo o tratamento jornalístico das candidaturas ser decidido apenas editorialmente e posteriormente controlado pelos tribunais, no outro extremo temos a intervenção de uma entidade reguladora que fixa critérios de intervenção e assegura o seu cumprimento, também com possibilidade de impugnação judicial das suas decisões. Por exemplo, no Reino Unido, a Ofcom decide quem são os "grandes partidos" para efeitos das decisões editoriais das televisões (para as eleições da próxima quinta-feira este é o documento), para além de ter outros poderes de controlo.
Em Portugal deixou-se essa difícil tarefa regulatória à CNE, e em parte à ERC, o que para além das questões de conciliação de competências, sempre coloca um grande labor interpretativo, semelhante ao que sucede com outros reguladores pelo mundo democrático, em cima de uma única entidade. Contudo, em última análise, se candidaturas, meios de comunicação social e auto- ou hetero-reguladores não trabalharem em conjunto, a questão irá acabar em tribunal e pode suceder o que sucedeu em 2011 com os debates obrigatórios e que levou ao primeiro boicote por parte de meios de comunicação social. Devo dizer que a este respeito é de saudar a iniciativa conjunta de muitos meios de comunicação social, mas é dela impossível extrair algum princípio novo, que não decorra já da Constituição, e medidas concretas que ajudem a melhorar a situação atual.
Nesta medida, sou a favor de quaisquer medidas que clarifiquem a regulação do setor no que diz respeito à cobertura jornalística das candidaturas durante o período eleitoral, com preferência para modelos que combinem auto- e hetero-regulação, como sucede no Reino Unido e noutros países europeus. E que sobretudo reforcem os elementos que clarifiquem junto das candidaturas, dos media e dos cidadãos, o que se pode e não pode fazer durante a cobertura jornalística das eleições, de modo a assegurar o melhor equilíbrio possível entre dois valores fundamentais: a liberdade de imprensa e a igualdade de tratamento das candidaturas.
Para estas eleições, bem como para as presidenciais, talvez seja já um pouco tarde, mas seria importante que após estas eleições o quadro regulatório fosse apurado (tanto ao nível legal quanto administrativo), com a intervenção de todas as partes interessadas. Não tanto porque o trabalho da CNE ou da ERC esteja a ser mal feito ou dificultado pelos media, mas porque isso também ajudaria os tribunais a decidir melhor, quando, por exemplo, sejam confrontados com uma providência cautelar que solicite a realização de debates com um certo formato. Algo que pode ser prevenido com melhor auto- e hetero-regulação.
Não que o caso português, sublinho, seja problemático (como podem julgar por vós mesmos aqui), sem prejuízo dos casos de partidos sem assento parlamentar (onde a noção inglesa de "major parties" poderia ajudar) e de novos partidos, em que ainda não é possível determinar em alguns casos (mas que precisam de especial proteção no que diz respeito à igualdade material de tratamento).