Geoff Mulgan, que é o mais próximo que tenho de um ídolo pop (embora seja realmente um guru da inovação social e da estratégia) acaba de escrever, com Stian Westlake, uma carta ao futuro Primeiro-Ministro britânico sobre "how to make the centre of government a truer and more effective servant of the people" - mas também eu me interesso por estas matérias e gostaria de repensar esta carta à luz do contexto português e da sua cultura política.
O primeiro aspeto interessante é que Mulgan e Westlake só estão preocupados com o centro do Governo que, curiosamente, em Portugal seria difícil de definir. É que Mulgan e Westlake sabem que as estatísticas do Governo britânico dizem respeito ao que aqui designaríamos por Governo + Administração Pública. Por isso quando falam do centro do Governo estão a falar do que em Portugal seria, pura e simplesmente, o Governo. Ou pelo menos, os seus ministérios centrais ou talvez ainda melhor: a Presidência do Conselho de Ministros (PCM). Isto indica já um modo de olhar para a boa governação pública ao mais alto nível. Mas os autores explicitam do que estão a falar no Governo britânico - "money, legislative power, and focus", ou seja, "Number 10, the Cabinet Office and Treasury", o que em Portugal seria o Gabinete do Primeiro-Ministro, Presidência do Conselho de Ministros e Ministério das Finanças. O único ponto em que a comparação é realmente difícil é entre gabinetes dos Primeiros-Ministros, uma vez que tradicionalmente este Gabinete no Reino Unido é muito maior do que em Portugal, onde está integrado na PCM, sem grandes equipes dependentes diretamente de si.
O segundo aspeto é o mais relevante: o que preocupa Mulgan e Westlake é o modo de distribuir as tarefas entre ministérios e departamentos. E têm algumas ideias bem radicais, como extinguir o Ministério das Finanças. A verdade é que o modelo de Governo raramente está no horizonte dos líderes políticos, exceto por razões superficiais e populistas como para anunciar redução de ministérios que não se demonstra verdadeira - substantivamente - no longo prazo. Esta deve ser, com efeito, a principal preocupação da boa governação pública. Tradicionalmente, tanto o Reino Unido como Portugal adoptam o modelo napoleónico/bismarckiano de departamentos governamentais de tipo vertical distribuídos por matérias estanques que vão sendo consideradas tarefas públicas ao longo dos séculos e criam importantes silos de poder político que podem servir como obstáculos a uma boa governação. As experiências de cruzamento e departamentos transversais são muito recentes e quase incipientes em Portugal enquanto que no Reino Unido conheceram uma grande implantação durante os Governos Blair com as famosas quatro unidades de coordenação: Strategy Unit de Mulgan, Communications Unit de Campbell, Policy Unit de Miliband (David) e Delivery Unit de Barber. É aqui que, na prática, Mulgan e Westlake começam e bem. A imagem abaixo mostra o que se pretende com a reestruturação do Governo contra a sua forma clássica e em favor do recentramento do Governo em torno das políticas públicas e das funções necessárias para responder aos cidadãos através do Programa Político sufragado:
(fonte: Mulgan&Westlake)
Em vez de um Governo de silos verticais apenas unido por uma frágil cúpula, temos um Governo em matriz que responde de forma multiplicada perante o Primeiro-Ministro. Em Portugal temos que fazer este caminho. As áreas da coordenação e comunicação política, as áreas de estratégia e planeamento, as áreas de monitorização e avaliação de serviços públicos, as áreas de serviços partilhados de recrutamento, formação e contratação são exemplos do que em Portugal, em maior ou menor escala, está por fazer. É um trabalho necessário porque para além de substituir a estafada narrativa da reforma do Estado - que já se percebeu que oscila entre a quimera e os cortes cegos - melhora o modo como se preparam e executam as políticas públicas. É certo que alguns dos ministérios tradicionais já tentam contornar a lógica clássica e integram algumas das funções referidas através da combinação do trabalho de gabinetes e entidades públicas dependentes dos referidos ministérios. Mas tudo isto só demonstra que estamos a tentar atamancar um problema, em vez de resolvê-lo de forma adequada.
Tal como a Finlândia está a substituir as disciplinas por tópicos, também Portugal devia subtituir o monopólio dos ministérios verticais por uma matriz governativa de departamentos verticais e transversais, em que as clássicas disciplinas governamentais - defesa, segurança interna, educação, segurança social - fossem cruzadas com áreas transversais de bom governo. A verticalização de toda a atividade política-administrativa nos ministérios tem como consequência que se por um lado se consegue uma especialização do que é específico em cada uma das políticas por eles prosseguidas, por outro lado duplica em burocracia ao mesmo tempo que restringe em profundidade as áreas transversais, como a contratação pública, a estratégia, a inovação, a comunicação. É certo que cada uma das áreas políticas setoriais deve poder contribuir para as áreas transversais, mas estas devem ser lideradas autonomamente permitindo também aqui uma especialização, ao mesmo tempo que se libertam das agendas mediáticas dos ministérios e que libertam os ministérios de preocupações transversais, que destroem liderança, especialização e escala. Com isto, para além do mais, tornam-se os ministérios clássicos mais leves e eficientes. Esta é a ideia por trás da carta de Mulgan e Westlake e não é nova. Esta noção de joined-up government é tema central do Capítulo X do The Art of Public Strategy de Mulgan e é algo que é fundamental. Para que resulte é preciso que os líderes dos departamentos transversais, mais do que se chamarem ministros tenham o seu efetivo poder político, mesmo que depois comandem unidades, gabinetes ou agências, com regras próprias de recrutamento e gestão, adaptadas às suas funções.
Para além das muitas ideias da carta de Mulgan&Westlake que podem ser facilmente adaptadas ao caso português eu gostaria de deixar algumas ideias para a nossa realidade:
1. Criar na Presidência do Conselho de Ministros, sob direção do Primeiro-Ministro, os Departamentos de (i) Estratégia; de (ii) Planeamento, Coordenação e Avaliação de Políticas Públicas ; (iii) Serviços Partilhados e Oferta Partilhada de Serviços Públicos e; (iv) Comunicação Pública. Extinguir todas as unidades específicas que nos ministérios desenvolvam funções semelhantes, mantendo apenas pontos de contato com cada um dos departamentos. Estes departamentos, embora sejam politico-administrativamente equiparados a ministérios terão com modelo de governo o gabinete ministerial + estrutura de unidades de missão + superintendência sobre entidades públicas autónomas já existentes com atribuições nas áreas da sua atuação. Isto permite governar efetivamente em matriz, ao mesmo tempo que se consegue reduzir o peso da máquina administrativa a partir dos ministérios clássicos, deixando-os mais livres para as suas tarefas essenciais de execução de políticas públicas. Ao mesmo tempo, grandes temas transversais da governação da próxima legislatura podiam ser conduzidos de uma forma integrada e efetiva, mesmo através de vários ministérios distintos, como são o caso das políticas públicas sobre Emprego, Qualificações e Investigação&Desenvolvimento aplicados.
2. Estas medidas devem ser acompanhadas por um conjunto de alterações no coração da Administração Pública dirigidas a três áreas: i) recrutamento e carreiras; ii) formação e avaliação; e iii) gestão financeira. O novo modelo de governo deve estar alinhado com novos modelos de gestão financeira, patrimonial e de pessoal. É preciso dar maior autonomia nestes três domínios aos dirigentes de cada entidade pública, a partir de orientações transversais traçadas pelos novos departamentos referidos no ponto anterior. Sobretudo no domínio financeiro é necessário permitir alinhar estratégia de longo prazo, com planeamento e execução de políticas públicas de curto e médio prazo através de um envelope financeiro que assegure autonomia e permita premiar a inovação e o sucesso. O próximo programa de governo deve conter medidas neste sentido, prevendo que o orçamento é feito por políticas públicas e que a responsabilidade por gerir o envelope financeiro de cada política pública é dos ministros responsáveis pela sua execução, coordenados pelo responsáveis transversais e pelo Primeiro-Ministro.
3. É preciso mapear toda a Administração Pública a partir das suas atribuições legais e cruzá-la com as políticas públicas que o Primeiro-Ministro quer prosseguir. Onde exista sobreposição de atribuições os serviços devem ser fundidos; onde não se encontre justificação para uma atribuição à luz de políticas públicas a prosseguir os serviços devem ser extintos. Este trabalho é imperativo e tem que ser feito. Os modelos de governo das entidades públicas sub-governamentais não podem ser redundantes nem inexplicáveis (como acontece com as EPE - Entidades Públicas Empresariais), mas, pelo contrário, servir cada uma um propósito específico, aumentando a escolha pública sem redundâncias (como acontece com os modelos de governo que os particulares podem escolher para constituirem as suas empresas ou os seus modos de atuação no terceiro setor).
4. É a partir do centro do Governo que se tem que decidir como alinhar as políticas públicas com os modelos de governo e de gestão que melhor as executem. Uma das primeiras funções do novo departamento de Planeamento, Coordenação e Avaliação de Políticas Públicas, em articulação com os demais novos departamentos, tem que ser estudar e avaliar, para cada política pública, qual o melhor modelo de governo (in-house, em articulação com entidades do setor social/terceiro setor, contratando ao mercado). Estas opções têm que ser feitas antecipadamente, bem fundamentadas e transparentes. As novas regras da contratação pública, que serão transpostas pelo próximo Governo, contêm mecanismos inovadores como a Parceria para a Inovação que podem ajudar a conseguir os objetivos indicados.
5. Associado ao ponto anterior, o Governo tem que especializar-se em desenvolver métricas de avaliação de políticas públicas dirigidas aos resultados esperados de modo a que se possa estar regularmente a avaliar todas as dimensões da execução de uma política pública - a legislação, os modelos de governo, as metodologias e os próprios resultados. Esse trabalho deve ser feito sob a coordenação dos novos departamentos mas a partir de equipas novas ou constituídas a partir de entidades públicas já existentes, que podem inclusivé ser colocadas em concorrência, à procura de novas métricas mais fiáveis para medir os resultados sociais que o Primeiro-Ministro desejar alcançar com uma determinada política pública.
6. Tudo isto significa reestruturar o Governo centrando-o em torno de políticas públicas que seriam alimentadas e prosseguidas a partir das estruturas verticais e transversais, em matriz (um exemplo). Sob cada uma destas estruturas haverá muito trabalho para fazer, como garantir que os departamentos transversais se mantêm flexíveis de ponto de vista da gestão e do pessoal; e que os departamentos verticais melhoram as suas carreiras comuns e outros aspetos partilhados, de modo a focarem-se de forma mais produtiva em cada uma das suas funções na execução de políticas públicas.
Uma coisa é certa: nada disto se fará sem um enorme empenho do Primeiro-Ministro.
(em estéreo com o Vermelho)