Estará Portugal preparado para primárias num partido de poder?
A experiência de primárias, no Partido Socialista, não é completamente inovadora em Portugal - essa marca coube ao LIVRE - mas é a primeira a surgir num partido de poder, com reais possibilidades de constituir Governo e, como tal, de dar uma maior importância à escolha do candidato a Primeiro-Ministro (pese embora a incorrecção formal da opção). É por isso de lamentar que um processo de tal modo importante esteja a ser feito de modo apressado, num contexto de luta interna pelo poder. As consequências negativas são fáceis de elencar:
a) de um ponto de vista formal: um regulamento feito a contra-relógio, sem tempo para integrar elementos comparados ou mesmo de experimentar em ambiente controlado o procedimento escolhido; a falta de observadores externos que pudessem credenciar esta primeira experiência; e a ausência de articulação com instâncias públicas, que me parece decorrer da faceta institucional dos partidos, tal como são entendidos pela Constituição (com o monopólio do acesso ao poder vem uma grande responsabilidade, para parafrasear Ben Parker);
b) de um ponto de vista substantivo: o contexto de urgência e combate polariza os discursos programáticos, o que apesar de ter aspectos positivos (clarificação, mobilização) agudiza a tentação de eivar a substância do debate de assuntos politicamente menores, mas potencialmente ganhadores de votos, como ataques de carácter, revisionismos históricos, e quejandos.
Para além destas questões, contudo, o maior problema levantado pelas primárias do PS e aquele que recomendaria maior planeamento e melhor contexto de oportunidade tem que ver com a própria natureza do Partido Socialista enquanto partido de poder: qualquer membro de um partido ou leitor de romances portugueses do século XIX conhece bem a realidade e os perigos do caciquismo. O próprio processo de primárias do PS já fez surgir algumas notícias de aliciamento ao voto, sobretudo a partir da figura do simpatizante. Ora aquela que é a maior força de umas primárias - a qualidade de simpatizante, sem a carga institucional da militância - pode afinal tornar-se na fraqueza que desgraça, desvirtua e defrauda a abertura do PS à sociedade e aos eleitores.
Há mais de um ano tive oportunidade, juntamente com algumas dezenas de filiados e simpatizantes do PS, de subscrever uma carta dirigida ao Secretário-Geral do PS onde, entre outras coisas, é solicitado que se permita a participação de simpatizantes em decisões fundamentais do partido, sobretudo de definição de políticas. Confesso, aliás, que me parece mais importante - da perspectiva do empowerment do cidadão e da sua sensação de responsividade das instituições político-partidárias, para utilizar dois palavrões da teoria democrática - empowerment e responsividade - chamar as pessoas a decidirem (ou influenciarem) políticas, do que a decidirem os seus candidatos a representantes políticos, embora, em ambas as escolhas, seja necessário assegurar maior abertura dos partidos na sua tarefa de mediação dessa escolha.
A figura do simpatizante, para mim, acompanha a do militante, apenas numa proximidade político-ideológica, que depois se distingue do compromisso e da responsabilidade orgânica. Ora essa partilha de compromisso político, que aliás, e bem, está presente no processo de registo de simpatizantes do PS para as eleições primárias, pode estar em perigo, quer pela pouca preocupação com as garantias para assegurar a sua integridade e autonomia face a outras ideologias e programas político-partidários, quer, em larga medida como reverso desta primeira característica, pela enorme possibilidade de manipulação da figura do simpatizante para assegurar resultados internos do PS desajustados das efectivas convicções dos votantes e até com externalidades positivas para outros partidos (para ser simpático).
O caciquismo que caracteriza o processo político eleitoral, nos partidos e para órgãos de soberania, é uma realidade enraizada, tanto mais forte quanto maior é a proximidade real do poder. Não basta, pois, sem mais e à pressa, mudar os métodos, é preciso preparar o caminho para a mudança de quem os vai aplicar.
Por tudo isto, apesar de saudar a ideia de primárias num partido como o PS, temo estas primárias em concreto. Sobretudo numa altura em que o Partido Socialista já devia estar unido em torno de uma alternativa política agressiva, contundente e substantiva, a praticamente um ano de eleições legislativas. Mas isso é outra história, que só vai começar a ser contada a 28 de Setembro. Bem ou mal.