Lei Quadro das Fundações: A Portaria e sua crítica
Foi hoje publicada a Portaria n.º 75/2013, que, essencialmente, vem fixar dois valores cuja existência é prevista na lei-quadro das fundações e aí remetida para portaria.
O primeiro diz respeito ao valor mínimo a partir do qual se presume que existe património suficiente para a prossecução do fim fundacional (trata-se de uma presunção ilidível), que é fixado em 250.000€. E o segundo diz respeito ao valor de rendimentos anuais a partir do qual devem existir auditorias externas às fundações, que é fixado em 2 milhões de euros.
Sendo certo que é sempre complicado discutir a opção por valores fixos num determinado quadro legal, o valor de dois milhões de euros, sendo um valor elevado para o panorama fundacional português, parece coadunar-se com a ideia de que a realização de auditorias externas, que surgem como um encargo para as fundações, ao mesmo tempo que surgem como uma segunda linha de defesa da actividade fundacional, para além do órgão interno de fiscalização, deve ser excepcional e apenas deve recair sobre as grandes fundações. Seria, contudo, interessante conhecer a origem deste valor.
Já quanto ao requisito dos 250.000€, se, por um lado, este vinha sendo o valor de referência não oficial, mas oficioso (ao ponto de vir referido no documento de enquadramento da proposta de Regulamento Europeu sobre o Estatuto de uma Fundação Europeia - pág. 52, nota de rodapé n.º 162), por outro, a justificação que é dada para a sua previsão normativa, sobretudo face ao valor previsto na referida proposta de Regulamento Europeu causa-nos alguma estranheza.
Com efeito, lê-se no preâmbulo da portaria que:
"o Conselho [Consultivo das fundações] sugeriu um alinhamento com os montantes em discussão na União Europeia a propósito da proposta da Comissão para um Regulamento relativo ao Estatuto da Fundação Europeia, e que se situam nos 50 mil e 100 mil euros, consoante a sua atividade se circunscreva aos planos local e regional, ou nacional e internacional, respectivamente.
A opção é por um valor mais elevado, na medida em que aqueles montantes não parecem adequados ao caso português, tendo em conta os compromissos assumidos no âmbito do Programa de Assistência Económica e Financeira a Portugal e a desejável sustentabilidade das fundações para a promoção dos respectivos fins de interesse social, sem recurso sistemático a apoios públicos".
Em primeiro lugar, no texto da proposta oficial de Regulamento, pode ler-se, no n.º 2 do artigo 7.º, que "A FE possui ativos equivalentes a pelo menos 25 000 euros". É certo que existe um parecer recente do Comité das Regiões que propõe o aumento de 25.000 para 50.000€, mas teria sido importante referir que o valor da proposta de Regulamento é 10% do que foi fixado pelo Governo. Isto leva-nos ao ponto que me merece crítica nesta portaria.
O Governo justifica, como se percebe pelo excerto citado, a opção pelos 250.000€ com compromissos assumidos no âmbito do Programa de Assistência (para além da sustentabilidade das fundações) o que resulta bizarro. Parece-nos que o Governo tem vindo a adoptar uma posição conservadora e anacrónica em relação às fundações privadas, que é confirmada por esta portaria. Eis alguns pontos para reflexão:
1. Os 250.000€ são o valor administrativo de referência há mais de uma década, pelo que o Plano de Assistência não explica tal valor, mas mesmo que explicasse, não se compreende o que tem o Plano que ver com o valor a ser exigido para a constituição de fundações privadas, pelas quais o Estado não responde;
2. Os 250.000€ face ao custo de vida em Portugal são limitadores de, pelo menos, um certo tipo de actividade fundacional, expressa pelas community foundations, fondazioni di partecipazione e as bürgerstiftung, onde se convocam grupos de muitos cidadãos para um financiamento que se torna a dotação inicial da fundação, ligando elementos associativos e fundacionais e permitindo uma gestão de equipamentos sociais e de iniciativas locais com uma maior participação e envolvimento; em contrapartida, a opção pelos 250.000€, em face do custo de vida português, torna a Fundação, por comparação com as sociedades comerciais e as associações, uma forma jurídica reservada a poucos, sem prejuízo do ónus que recai sobre o fundador de demonstrar que a fundação que pretende instituir sobrevive e se desenvolve com um valor menor;
3. Caso a Proposta de Regulamento europeu venha a ser aprovada, mesmo no cenário dos 100.000€ de valor inicial mínimo, é natural que muitos potenciais fundadores optem pela Fundação Europeia em vez de uma fundação de interesse social nos termos do Código Civil e da lei-quadro, dada a diferença de 150.000€. Faria, pois sentido, o alinhamento de valores.
4. Finalmente, não se compreende o argumento de que se quer evitar o recurso sistemático a apoios públicos. Por um lado, tais apoios não fazem parte da matriz genética das fundações e, como tal, nada obriga a que o Estado os conceda (se é politicamente recomendável que o faça é outra discussão); por outro lado, na pior hipótesse possível, a da insuficiência futura do património fundacional que implique a sua extinção, e acauteladas todas as garantias jurídicas, não deve haver qualquer preconceito face a tal hipótese. O mesmo pode suceder, por exemplo, com uma sociedade unipessoal por quotas.
Nota final: para se ter uma ideia da realidade comparada, na Alemanha, que tem um custo de vida muito distinto do nosso, o valor médio exigido para que uma fundação possa ser instituída é de 50.000€ (pág. 15.)