Não me investiguem online
A maioria das pessoas desconhece que, cada vez que compra uma série de produtos ligados às novas tecnologias, como DVD virgens ou um disco rígido portátil, incluído no preço que paga há uma compensação às editoras e autores (através de uma discreta entidade designada Associação para a protecção da cópia privada). Essa compensação é devida, pelo que se percebe da lei e da interpretação da literatura especializada, pelas cópias privadas feitas através da utilização livre, isto é, das cópias que poderá fazer por ser o titular da sua cópia e ter os meios tecnológicos para, licitamente, poder fazer mais cópias.
Esta explicação deve servir para se perceber o óbvio: que é um mecanismo injusto, na medida em que não se aplica a cópias privadas específicas mas à potencialidade de essas cópias virem a ser feitas. Daí que, não obstante este mecanismo se continuar a aplicar (aliás, um pouco por toda a Europa), se tenha começado a procurar soluções alternativas para âmbitos em que esse controlo efectivo pudesse ser feito**. Como o domínio digital.
Pessoas com algum conhecimento em novas tecnologias podem já ter ouvido falar em DRM - Digital Rights Management - que é o jargão para aquilo que podemos designar de gestão de direitos digitais. Simplificando, são todas as tecnologias que permitam aos titulares de direitos de autor (ou seus representantes) controlar a realização de cópias privadas, como mecanismos de protecção contra a cópia.
A lei portuguesa acolheu esta evolução alterando, em 2004, o Código de Direito de Autor e Direitos Conexos (CDADC) e criando um capítulo intitulado "Protecção das medidas de carácter tecnológico e das informações para a gestão electrónica dos direitos", ou seja, DRM***. E aí também se prevêem sanções para quem tentar afastar ilicitamente estas tecnologias. E, assim chegamos à importância de tudo isto: evitar e punir a pirataria digital.
Os DRM, como forma de evitar a pirataria são um modo justo e bem melhor do que a compensação. Contudo, no domínio digital podemos estar sujeitos a ambos. Imagine-se uma situação em que comprámos um disco rígido para fazer backup de músicas que comprámos online e que estão protegidas. Na prática pagamos a compensação quando compramos o disco rígido e pagamos para superar os mecanismos de DRM.
Este é um primeiro problema que importa resolver e que traz grande actualidade a esta matéria. Mas há outro.
No esforço que está previsto e associado ao DRM no sentido de controlar a pirataria digital há cada vez mais tentativas por parte das empresas que têm direito à reprodução de obras protegidas (editoras) para controlar mais e melhor a informação a que os utilizadores de um serviço de internet têm acesso. A este respeito a discussão não podia ser mais actual.
Neste momento o Tribunal de Justiça da União Europeia aprecia um processo, a pedido de um tribunal de Bruxelas, no sentido de saber se é possível dar uma ordem a um ISP para:
"o estabelecimento, em relação a toda a sua clientela, em abstracto e a título preventivo, a expensas exclusivas desse FAI e sem limitação no tempo, de um sistema de filtragem de todas as comunicações electrónicas, tanto as que entram, como as que saem, transitando pelos seus serviços, nomeadamente através da utilização de software peer-to-peer, com vista a identificar na sua rede a circulação de ficheiros electrónicos contendo uma obra musical, cinematográfica ou audiovisual sobre a qual o requerente alega possuir direitos, e bloquear de se guida a transferência desses ficheiros, seja no momento do pedido, seja no momento do envio"
Isto é interessante porque recentemente uma congressista norte-americana apresentou uma proposta de lei com o sugestivo nome de "Do not track me online". Devem ler mas não é preciso dizer mais quanto ao sentido, embora a própria proposta preveja a possibilidade de a entidade reguladora poder apreciar a possibilidade de permitir acesso aos dados para investigação de violações de direito de autor.
As posições sobre esta discussão, do equilíbrio entre os meios para proteger os direitos de autor e a tutela da privacidade, sempre serão distintas no Estados Unidos e na Europa (o que é salutar para a evolução do problema) mas importa não evitá-lo ou contorná-lo. Por muito que se queira prevenir a pirataria é importante não esquecer que também a reserva da intimidade é um direito fundamental a preservar, com a mesma dignidade constitucional.
*O n.º 1 do artigo 82º do Código do Direito de Autor e Direitos Conexos prevê o seguinte:
No preço de venda ao público de todos e quaisquer aparelhos mecânicos, químicos, eléctricos, electrónicos ou outros que permitam a fixação e reprodução de obras e, bem assim, de todos e quaisquer suportes materiais das fixações e reproduções que por qualquer desses meios possam obter-se, incluir-se-á uma quantia destinada a beneficiar os autores, os artistas, intérpretes ou executantes, os editores e os produtores fonográficos e videográficos.
A lei n.º 50/2004 regula actualmente este artigo.
** Veja-se este artigo de Dário Moura Vicente, que continua bastante actual
*** Aliás, o n.º 2 do artigo 217º do CDADC define os mecanismos de DRM como "toda a técnica, dispositivo ou componente que, no decurso do seu funcionamento normal, se destinem a impedir ou restringir actos relativos a obras, prestações e produções protegidas, que não sejam autorizados pelo titular dos direitos de propriedade intelectual..."