"Reaprender a viver mais pobres"
Este post tem uma causa remota e uma causa próxima. A causa remota são as declarações de Isabel Jonet, no Jornal das Nove da SICN, de 6 de Novembro, que principiam com a frase que serve de título. A causa próxima é o post do Lourenço Cordeiro (LC), pessoa cujo blog leio intermitentemente desde que existe e pelos quais, pessoa e blog, tenho simpatia.
As declarações de Isabel Jonet podem ser ouvidas (e vistas) aqui pelo que o leitor fará o seu juízo. Eu vou aproveitar um juízo feito pelo Lourenço para me pronunciar, indirectamente, sobre elas. A razão é simples: o post do Lourenço é uma reflexão sobre as declarações de Jonet. Não é um texto impensado, palavras proferidas num directo televisivo. Servem melhor o propósito de confrontar morais e ideologias, que é o que verdadeiramente está em causa.
Mas primeiro convém alinhar alguns argumentos de Lourenço separando o que me parece ser o essencial do acessório. Começando por este último aspecto, LC começa por notar que há em Isabel Jonet um problema de oratória (pouco talentosa) e de discurso (inconsistente), o que não desculpa a autora das afirmações, antes redunda num conjunto de "banalidades moralistas", e LC conclui "pensava eu que inócuas" (LC volta ao problema da forma mais adiante no seu post).
Primeiro momento em que o acessório se torna essencial: nunca o país desde que estou vivo esteve tão moral e moralista. Pelo que é fácil, por um lado, compreender que afirmações moralistas (ainda que banalidades) têm hoje muito mais importância do que em algum momento desde, por exemplo, 1977. Por outro lado, felizmente, moral matters. E muito. Os discursos políticos, religiosos, sociais, são sempre discursos eivados de uma tensão moral. E há muito pouco de banal nisto. Por isso, o primeiro aspecto que retiraria do post do Lourenço é que não podemos assumir que mesmo "banalidades moralistas" são inócuas. Não são, nem devem ser.
A prova do que digo no parágrafo anterior é oferecida pela própria mão de LC que entende as afirmações de Jonet "como coisas que qualquer pai (e avó) competente repete aos seus filhos. São ilustrações simplistas de uma hierarquia de prioridades saudável". Trata-se, pois, tanto de moral como de educação. Realidades que, aliás, são indissociáveis. Daí, LC, passando por um período em que revela estranheza pela utilização de um discurso tipicamente dirigido às crianças, mas aí utilizado em relação a adultos, conclui a sua análise das declarações de Jonet concordando com a sua substância: a de que os portugueses "- nós - habituaram-se nos últimos 20 anos a viver com défices orçamentais constantemente deficitários e isso levou à instalação de hábitos de consumo insustentáveis".
Creio que o final deste último parágrafo implica uma nota mais pois mistura consumo privado com consumo público, que, embora relacionados, importam distinções cruciais (mas sobre isto, com mais propriedade, ler Pedro Lains): o que LC está a afirmar é que o consumo privado disparou em Portugal nos últimos 20 anos sustentado por um financiamento público desse consumo, ainda que indirectamente. De outro modo, creio que a frase não faz sentido. Se bem percebo LC o que temos aqui é pois uma crítica, tanto moral, nos termos já apresentados, como política, pois a ideia de que o investimento público deve sustentar o crescimento da economia é, como se sabe, uma das correntes clássicas do pensamento de economia política e que, aliás, teve expressão em inúmeros países da Europa, alguns dos quais continuam a viver alegremente acima das suas possibilidades.
Devo dizer que desregramento do consumo privado é bastante mais complexo do que a simples assunção de que fomos buscar dinheiro que não tínhamos (mas onde? pedimos emprestado. A quem? A banco privados. E esses bancos viviam acima das suas possibilidades? Enfim, tudo isto é muito complicado: o que veio primeiro, o português que deixou de saber viver remediado e se tornou num consumidor desenfreado ou os bancos que aliciaram os pobres cidadãos que não souberam resistir?)
A título pessoal prefiro o ascetismo da poupança, à confiança no consumo assente em crédito. Mas sou o primeiro a reconhecer que o modelo de capitalismo financeiro que se desenvolveu nas últimas décadas - estamos a falar de um modelo de civilização - propicia o segundo e não o primeiro. Os portugueses não estiveram à altura de dizer não a esta civilização consumista, faltou-lhes a fibra moral de outros tempos.
Se eu tenho queda para asceta e estóico, outros podem não ter. Apetece parafrasear Sartre, notando que o problema da moral é que a moral são os outros. Daí que se tornamos as nossas opiniões morais, opiniões de moral política, como as formuladas por Jonet, temos que estar preparados para a censura e para a crítica, sobretudo quando o fazemos de um modo soberbo e liceal.
Finalmente, quanto ao post de LC, devo notar que o argumento da relação entre Isabel Jonet e o Banco Alimentar contra a Fome é um argumento fraco. Algumas das melhores criações da humanidade foram feitas por pessoas que não quereria para meus amigos, algumas pura e simplesmente tinham mau carácter. Por isso, é um argumento que prova pouco. Acresce que a ajuda humanitária, que é o que faz o Banco Alimentar contra a Fome, providencia um quadro paliativo essencial, mas não resolve o problema. Isto talvez tenha que ver com uma das afirmações de Isabel Jonet, que como todas as outras, deixo à vossa consideração: "podemos estar mais pobres mas não temos miséria". Isabel Jonet terá que explicar com que noção de "miséria" vive face, por exemplo, as estes dados do INE.
Quem quer ser moralista entra na mais inflamada das discussões. Está aí a história da filosofia política e moral para o demonstrar. Não sejamos cândidos.