Carta aberta ao Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, ao Presidente da Junta de Freguesia de Carnide e ao Presidente do Conselho de Administração da EMEL
Ex.mo Senhor Presidente da Câmara Municipal de Lisboa
Ex.mo Senhor Presidente da Junta de Freguesia de Carnide
Ex.mo Senhor Presidente do Conselho de Administração da EMEL
As políticas de urbanismo têm como uma das suas principais componentes o envolvimento dos cidadãos. Recentemente, nas suas provas de doutoramento, o Professor João Miranda foi chamado a explicar o "direito à cidade", invocado na sua tese, e defendeu-o como um direito fundamental, que, entre outros conteúdos, postula uma intervenção activa dos cidadãos na melhoria da qualidade de fruição da sua cidade. Isto significa que não bastam já (embora tenham sido importantes) as narrativas de inclusão e participação dos cidadãos, que muitas vezes não passam de uma retórica política inconsequente. Mais grave, muitas vezes tais narrativas de inclusão convivem com processos de decisão paralelos em que os cidadãos não tiveram qualquer intervenção deixando-os com uma sensação de frustração: discutiu-se um assunto e nada ficou resolvido enquanto ao mesmo tempo sem que nada se tenha discutido são tomadas decisões que afectam os cidadãos.
Há cerca de um ano, sabendo que iamos ser pais, eu e a minha mulher resolvemos começar a procurar casa. Moravámos no centro da cidade de Lisboa, na Praça das Flores, mas pretendíamos um lugar mais calmo e com melhores condições de mobilidade e acesso. Após alguma procura e querendo permanecer em Lisboa, a nossa cidade (falando por mim, já vou na 5ª freguesia em que habito), decidimos mudar-nos para o Centro Histórico de Carnide. Apesar de ser uma zona que está a passar por um processo de requalificação demorado e com um futuro imprevisível - sopesados todos os factores pareceu-nos uma boa opção.
Para a nossa escolha contribuiu decisivamente a baixa intensidade de circulação automóvel, apenas com picos na hora do almoço e do jantar em que os restaurantes típicos da zona atraem muitos clientes. A baixa intensidade de tráfego e permanência automóvel é para nós importante não apenas para conseguirmos arranjar um lugar para o nosso carro mas sobretudo porque, havendo poucos passeios no Centro Histórico, e estando nós então à espera de um bebé, era importante haver boas condições de mobilidade e acessibilidade. São este tipos de preocupações que influem nas escolhas dos cidadãos e na qualidade da fruição da cidade.
Na altura da escolha do Centro Histórico de Carnide tive o cuidado de ler o Plano de Urbanização Carnide-Luz e considerei-o estimulante. Não obstante arrastar-se há vários anos (desde o início deste século, pelo que pude perceber), os objectivos que identifica são correctos. No artigo 2º do Regulamento do Plano, diz-se mesmo que um dos objectivos é o de ordenar a zona do Centro Histórico tornando-a uma zona total ou parcialmente pedonal, bem como ordenar o tráfego autómovel e providenciar zonas de estacionamento. Entre outros aspectos.
Apesar de conhecer a morosidade que por vezes aflige as decisões administrativas, confesso que a existência deste Plano e alguma réstia de confiança que ainda tenho na administração pública me agradaram bastante e pesaram na aposta de longo prazo da minha família quanto ao Centro Histórico de Carnide.
Tendo mudado de casa há cerca de um ano, constato, contudo, que a qualidade de vida no Centro Histórico tem vindo a deteriorar-se:
a) apesar do projecto de requalificação do largo do Coreto ter ganho o Orçamento Participativo em 2010, ainda não se iniciaram quaisquer obras;
b) a 1 de Agosto foi introduzida uma alteração nos sentidos de trânsito em Carnide sem que se tenha percebido qual a sua fundamentação, qual o seu propósito e com consequências muito negativas, não obstante o (inconsequente) envolvimento dos interessados; e finalmente,
c) a 1 de Outubro várias áreas circundantes ao Centro Histórico foram alvo de ocupação pela EMEL, levando a que as pessoas (maioritariamente devido ao Colombo) que aí estacionavam gratuitamente passassem a estacionar no Centro Histórico (em contrapartida, tais locais de novo estacionamento pago à EMEL encontram-se recorrentemente vazios e para mais em bairros com uma topografia moderna e ampla).
Neste momento a situação no Centro Histórico de Carnide é de uma profunda quebra na qualidade de vida e da fruição do bairro e, logo da cidade.
Tomemos como exemplo a Travessa do Jogo da Bola, onde habito (mas o exemplo podia aplicar-se à Rua da Mestra ou das Parreiras): apesar de ser uma artéria pequena, ainda assim, conta com duas crianças abaixo dos 4 anos de idade, e com vários idosos. Não tem, contudo, quaisquer passeios e os carros estacionam junto à entrada das casas, muitas vezes impedindo a saída e entrada de carrinhos de bebé ou de idosos com equipamentos de apoio à locomoção. Acresce que com a referida alteração de trânsito de dia 1 de Agosto há um frequente desrespeito dos sentido de circulação, contra todas as expectativas dos moradores e com perigo especial para as crianças. Além disso, e desde 1 de Outubro, o estacionamento é caótico (aplicável em especial ao Largo do Jogo da Bola), notando-se claramente, não apenas um aumento de carros estacionados, mas um estacionamento selvagem, que demonstra uma total despreocupação com bairro e os seus moradores. Muitas vezes, carros mal estacionados, pura e simplesmente bloqueiam a possibilidade de circulação pedonal. Por outro lado, este estacionamento acrescido e caótico reduziu também drasticamente os lugares disponíveis para as horas de maior afluxo aos restaurantes, num bairro que já de si, oferecia poucas possibilidade de estacionamento ordenado e condigno.
A topografia do Centro Histórico de Carnide não é muito distinta de outros bairros históricos em que, pura e simplesmente, a circulação automóvel foi restringida, como é o caso do Bairro Alto, Santa Catarina ou Alfama. Também aí há um conjunto de restaurantes típicos a proteger, sendo necessário garantir que os clientes podem a eles aceder, e também aí convivem moradores idosos com a atracção de jovens casais com filhos. Contudo, o Centro Histórico de Carnide não só não mereceu igual tratamento, como as recentes intervenções na área agudizaram os problemas típicos de um bairro com esta topografia.
A fruição da cidade e a qualidade de vida que conseguimos ao habitar um bairro em que nos sentimos seguros e tranquilos é um bem inestimável. O nosso bairro, a nossa casa, é o nosso último reduto. Sei bem que as dificuldades que se colocam à vida urbana são várias, mas os pontos que apontei e que têm vindo a contribuir para a degradação da qualidade de vida no Centro Historico de Carnide foram deliberadamente decididos, aparentemente sem qualquer antecipação das profundas consequências nefastas que produzem no dia-a-dia de um Centro Histórico que abriga muitos idosos e jovens casais com filhos pequenos, pessoas com especial necessidade de um bairro ordenado, livre e seguro. E, onde, sublinho, faltam os passeios, quando se anda a discutir e provocar um aumento do tráfego automóvel. Parece-me a total desconsideração de prioridades e proporções.
Aos cidadãos são dados mecanismos vários, desde o direito de petição até aos direitos de acção judicial para defesa dos seus direitos e mesmo de interesses difusos, mas considero que o primeiro dos passos a tomar é alertar as entidades administrativas competentes e que podem contribuir decisivamente para a resolução destes problemas, em articulação (consequente) com os moradores e demais interessados. Por um lado, este passo assegura que tais entidades sabem o que se passa, não lhes sendo desculpável que nada façam. E, por outro, assegura que tais situações de degradação da qualidade de vida urbana, são afinal decididas em concordância com as entidades que escolhemos para administrar a nossa vida pública.
Sinceramente,
Domingos Soares Farinho,
morador do Centro Histórico de Carnide.