É difícil encontrar num mesmo artigo, sobretudo não científico, as duas ou três questões essenciais no debate entre liberdade de imprensa e direito à privacidade. O Economist, que tem tentado, diga-se, desta vez conseguiu-o, com Keeping secrets in the age of tweets.
As duas (ou três) questões essenciais são:
1. Deve o sistema de justiça ter prioridade na ponderação e resolução de um conflito de direitos (ou apenas pode actuar a posteriori?);
2. Qual deve ser a natureza e o papel do regulador dos media?
A primeira questão é a questão fundamental. Simplificando e generalizando, os meios de comunicação social tendem a entender que os tribunais só podem pronunciar-se sobre potenciais violações da privacidade depois de exercida a liberdade de comunicação social. Já aqueles que defendem a privacidade (não só os visados mas muitos investigadores e académicos) entendem que o conflito entre a liberdade de comunicação social e a privacidade pode ser alvo de juízo do sistema de justiça desde que seja possível demonstral a iminente colisão dos direitos e, sobretudo, antes da produção do dano.
Não é uma questão fácil e das poucas certezas que temos é a questão variar com o quadro sociológico através dos tempos e das sociedades. Eis, pois, porque o debate é tão importante; porque é tão importante que se esgrimam argumentos a sustentar as diversas posições.
Parece pacifico em Portugal que os tribunais podem apreciar preventivamente, verificados os pressupostos normais, de iminência do dano, agravamento na demora da prevenção e aparência de prevalência do direito à privacidade. Não compreendo porque devemos deixar esta questão à decisão dos meios de comunicação social, se houver indícios suficientes para levá-la junto de um tribunal (ou, preliminarmente de uma entidade administrativa). Contudo, o incumprimento de decisões judiciais por parte de alguns media e certas posições públicas de comentadores demonstram que existe quem tenha este entendimento.
É exactamente isto que é discutido no artigo do Economist enquadrado pela utilização das novas plataformas sociais, desde logo pelos próprios meios de comunicação. O jornal britânico refere um advogado que defende que devemos "treat privacy like libel [difamação], with penalties and remedies available only after publication". Para isso o Economist entende que "[s]uch an approach could be accompanied by a beefed-up version of the now voluntary Press Complaints Commission with statutory powers to protect privacy and punish newspapers that breach it, and tighter definitions of "the public interest" and of who counts as a "publique figure" (negrito meu).
Isto é notável, desde logo porque referido por um jornal liberal e porque, levando-nos para a segunda questão essencial neste debate, nos permite perceber a confusão estéril em que Portugal se encontra em termos regulatórios, especificamente no que diz respeito a mecanismos dirigidos à colisão da liberdade de comunicação social com o direito à privacidade. Podemos genuinamente perguntar se a ERC, a ANACOM e a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista não têm todas responsabilidades e competências nesta matéria, embora, aparentemente inócuas, para além de parcelares e fragmentadas. A matéria é tanto mais crucial quanto um regulador claro e eficaz poderia servir melhor pelo seu acompanhamento, pela sua especialização e pela promoção da auto-composição de conflitos para além da normal hetero-regulação e aplicação de sanções. Contudo, o cenário em Portugal é anémico e qualquer tentativa de torná-lo mais equilibrado é levada para um infindável, inconclusiva e inconsequente discussão sobre os ataques à liberdade de imprensa, iludindo a discussão verdadeiramente importante. Sobram os tribunais, o que é toda uma outra história.
"Beefed-up" parece ser a expressão, realmente.