Tribunal Constitucional, Interpretação constitucional e o Preconceito contra os funcionários públicos
Alguns dados de partida:
1. Eu li o Acórdão. Um comentário jurídico-político ao Acórdão não se compadece com o tamanho de um post, a não ser que o blog se destine à publicação, na íntegra, de artigos científicos. Não é o caso, obviamente.
2. Há inúmeras questões interessantes, de um ponto de vista jurídico, e importantes, para a vida de todos nós, no Acórdão do Tribunal Constitucional.
3. Sendo, por exemplo, tão interessantes as questões da inconstitucionalidade do corte de um subsídio aos funcionários públicos como a da não inconstitucionalidade da contribuição extraordinária de solidariedade (CES), evidentemente resulta mais importante a primeira, pela simples razão que é essa que está a ser usada como arma política entre o Governo e a oposição e é essa que poderá levar a mais medidas de austeridade.
4. O meu comentário, até porque é também nesse sentido que têm ido outros comentários de juristas que respeito, é apenas quanto à decisão de declarar inconstitucional o corte de um subsídio aos funcionários públicos.
5. Essencialmente, o que pretendo demonstrar é que o Acórdão do Tribunal Constitucional reflecte - juridicamente - um problema latente na sociedade portuguesa: o lugar e a importância dos funcionários públicos.
Tal como sucedeu o ano passado, o Tribunal Constitucional considerou violado o princípio da igualdade (material), previsto no artigo 13.º da CRP. A violação deste princípio, como todos os juízes do TC reconhecem - incluindo os que votaram contra - e é pacífico na doutrina constitucional, implica duas operações. Em primeiro lugar, (i) descobrir uma discriminação entre duas classes de situações ou pessoas - no caso entre funcionários públicos e privados; em segundo lugar (i) a inexistência de um critério constitucional atendível para fundamentar tal discriminação.
No passado o tribunal entendeu, sobretudo por razões de eficácia da medida em causa, que, transitoriamente, o corte de subsídios aos funcionários públicos, cumpria ambos os requisitios, ou seja, era uma discriminação, mas aceitável, quer pela sua eficácia, quer pela sua transitoriedade (razão pela qual, embora tenha declarado inconstitucional, limitou os efeitos para o futuro).
Neste acórdão, o TC entendeu que deixou de existir fundamento para a discriminação, quer porque a transitoriedade parece estar afastada, quer porque existem outras medidas que podem obter o mesmo resultado pretendido com a discriminação sem se ter que a efectuar.
Chegados a este ponto importa retirar algumas conclusões:
1. O Tribunal deu, como já tinha dado no acórdão do ano passado, muita importância ao contexto. Pelo que as críticas que atacam o TC com este argumento só podem ser explicadas por desconhecimento do acórdão e da jurisprudência constitucional em geral;
2. O Tribunal na sua interpretação jurídica, além de dar importância ao contexto, fá-lo de modo actualista, isto é, considera a norma face a um quadro teleológico presente e não face a uma leitura originalista. Novamente, quem pretende criticar o TC com este argumento, ou desconhece ou pretende escamotear a realidade.
3. A principal divergência entre os juízes do TC - oito contra cinco - é quanto ao segundo requisito, ou seja, o da fundamentação da igualdade material, a partir de uma justificação constitucional para a discriminação. Aqui começam a surgir as mais variadas críticas ao acórdão.
a) Começando pelo voto de vencido dos cinco juízes, o seu argumento principal é o de que não foi demonstrada dispensibilidade da medida, por o tribunal se ter fundado num "dado que é jurisdicionalmente indemonstrável" (ou seja, a existência de outros modos de responder à necessidade de reduzir o défice).
b) Li uma opinião (Pedro Lomba), que, no essencial, vai no sentido do voto de vencido em causa, sobre a impossibilidade epistemológica, de o tribunal - por o ser - poder conhecer da realidade do mesmo modo que um Governo e, como tal, decidir sobre a alternatividade de medidas, capazes de fundamentar um juízo de violação do princípio da igualdade. É de facto um argumento importante e impressionante, radicado na essência da separação de poderes e que explica, por exemplo, também, a razão pela qual um tribunal administrativo raramente se pode substituir à Administração Pública, mesmo quando a condena a fazer algo.
c) Finalmente, para o que aqui me interessa, li igualmente um importante argumento sobre a metódica da aplicação do princípio da igualdade por parte do TC (Miguel Poiares Maduro), que pode ser subdividido em duas partes: (i) o TC não apresenta uma metodologia auto-vinculante de aplicação do princípio da igualdade, que permita compreender como se posiciona, face a diferentes contextos, na aplicação desse princípio e que indique as suas "escolhas institucionais"; por esta razão, e face aos interesses em causa "predominantemente maioritários", o TC devia mostrar "maior deferência em relação ao sistema político"
Creio que podemos encontrar nestas três construções uma linha comum: o TC deve intervir menos em situações complexas e que convocam opções políticas muito variadas. Esta posição é - em si - uma das posições teóricas que podemos adoptar quanto ao fenómeno mais vasto da interpretação constitucional. É exactamente por isso que os tribunais constitucionais são entess colectivos: tal como os parlamentos são plurais para acomodar diferentes ideologias, os tribunais constitucionais são-no, não apenas para acomodar (espera-se que secundariamente) diferentes ideologias, mas, sobretudo, diferentes posições sobre interpretação constitucional.
Acresce que a interpretação não pode ignorar o interpretado. Apesar de as convicções dos vários juizes e juristas, sobre uma teoria e prática da interpretação constitucional ser importante, é igualmente importante a convicção que juizes e juristas têm sobre a matéria a interpretar (cf. Raz, On the Authority and Interpretation of Constitutions). Ora, o meu ponto é - essencialmente - que tão importante como o confronto de posições sobre interpretação constitucional é, no Acórdão do TC, e quanto a este ponto em particular - a posição que os vários intervenientes têm quanto à oposição funcionários públicos/funcionários privados. Diria mesmo que essa é a questão decisiva.
E quanto a este ponto, e para terminar:
1. É pacífico que o Tribunal Constitucional pode apreciar violações ao princípio da igualdade, mesmo na sua vertente de igualdade material.
2. É igualmente pacífico (apesar de ter lido Paulo Mota Pinto afirmar que isso demonstra uma "preocupante confusão") que a metódica do princípio da igualdade, na sua vertente material, convoca a aplicação do princípio da proporcionalidade. Não é nada de novo: é pacífico na Alemanha, é pacífico na jurisprudência do TC, basta ler Gomes Canotilho.
3. O facto de o TC poder aplicar o princípio da proporcionalidade num juízo de constitucionalidade em que esteja em causa a aferição do princípio da igualdade vai sempre - sublinho, sempre - implicar que o TC vai ter que levar em conta não apenas a realidade, mas uma prognose dessa realidade, onde se inclui, necessariamente, uma prognose sobre o comportamento do legislador sobre essa realidade. É por isso que Poiares Maduro, por exemplo, afirma que a interpretação constitucional é o "produto de um processo simultaneamente concorrencial e cooperativo entre diferentes actores, em particular os tribunais e o sistema político". O ponto está, como nota o autor, em tentar estabelecer regras para esse processo. Para Poiares Maduros a menor intervenção do TC justifica-se pela ausência de uma fundamentação prévia da metódica do princípio da igualdade do TC (o que não me parece ser verdade) e por estarmos perante "interesses maioritários", o que me parece perturbante, mas que terei que deixar para outro post.
4. O ponto não é, por isso, como se diz, por exemplo, no voto de vencido do TC, que a questão seja jurisdicionalmente indemonstrável, mas, concorde-se ou não, que a questão seja jurídico-politicamente desejável, como refere Poiares Maduro ao defender que neste caso - no caso dos funcionários públicos - deveria haver maior deferência do poder do TC face ao legislador.
Assim, no que toca à questão do corte do subsídio dos funcionários públicos o que estamos, ao fim e ao cabo a discutir, são as nossas próprias convicções sobre a contraposição entre funcionários públicos e privados. Questão onde reina o preconceito. E digo preconceito pois, quer quem apoia a ideia de que os funcionários públicos são privilegiados face aos privados, quer quem combate essa ideia, raramente dispõe de elementos completos - porque não existem estudos completos sobre o assunto - ou raramente aceita discutir a questão de forma aberta. Incluo-me no primeiro grupo, sendo que defendo, há muito, uma equiparação, onde equiparável (que é muito) entre funcionários públicos e privados.
Ora a verdade é que as convicções (e os preconceitos) que tenhamos quanto a esta questão vão moldar-se, no caso de sermos juízes e juristas, às nossas posições sobre interpretação constitucional. E é difícil resistir-se a isso e não sei se haveria vantagens.
O voto pela declaração de inconstitucionalidade do corte de um subsídios aos funcionários públicos e o voto de vencido dos cinco juízes quanto a esse sentido é, por isso, um confronto entre entendimentos sobre a posição dos funcionários públicos face aos privados. E o TC entendeu, e a meu ver bem, porque a Constituição permite que ele o faça, e a realidade recomendava-o, que os funcionários públicos não podem ser discriminados, tal como o Governo pretende discriminá-los.
Neste sentido pode ter razão Vital Moreira quando alerta que este acórdão aponta para uma equiparação de regimes entre os dois tipos de funcionários, mas também terá razão (constitucional) qualquer discriminação que seja proporcional, ou seja, que conte, do lado do Governo, com uma fundamentação sólida das razões que justificam a discriminação. Mas tal só confirma que o Governo tem outros caminhos e que o TC decidiu bem.