A proposta de Lei de Bases da Economia Social
Na verdade há duas. Uma do PSD (que é discutida na generalidade, hoje de manhã na AR) e outra do BE (esta designa-se, Lei de Bases da Economia Social e Solidária, mas já lá vamos)
As proposta podem ser consultadas aqui (PSD) e aqui (BE).
Vou ignorar a exposição de motivos e os considerandos, embora recomende a sua leitura, sobretudo comparada. PSD e BE coincidem em vários pontos, como na evocação do esteio histórico, na enumeração dos princípios, no peso da economia social no PIB e no emprego. Contudo, adoptando a linguagem própria da social-democracia e da esquerda mais radical.
Vou também ignorar a questão do objecto da lei. Por um lado, na proposta do PSD fala-se em "regime jurídico da Economia Social", quando se devia falar nas bases do regime jurídico da Economia Social; por outro, na proposta do BE fala-se em "quadro geral do sector da economia social", correndo o risco de se confundir Lei de bases com lei-quadro (são coisas diferentes, apesar de tudo).
O primeiro grande desafio ao fazer uma Lei de Bases da Economia Social é, obviamente, definir o âmbito da lei, ou seja, o âmbito da Economia Social. Se, por um lado, a lei não tem que conter definições, por outro, enquanto lei tem que poder ser objectivo e determinável o campo de aplicação das suas normas. A proposta do PSD tenta fazer normativamente o que sucede no campo das ciências sociais que estudam o Terceiro Sector: não se comprometer. Assim remete o âmbito de aplicação da sua proposta para uma noção complexa, combinando vários critérios e que dá um bocado para tudo:
Artigo 2º
(Definição)
Entende-se por Economia Social o conjunto das actividades económicas e empresariais, livremente levadas a cabo por entidades que actuam de acordo com os princípios referidos no artigo 5.º, cuja missão vise o interesse geral económico ou social da Comunidade ou o interesse dos seus membros, utilizadores e beneficiários, com respeito pelo interesse geral da Comunidade.
Já o BE faz ainda melhor: define a economia social por exclusão de partes:
Artigo 2º
(Definição)
1. O sector da economia social e solidária é constituído por entidades autónomas distintas do sector público e do sector privado da economia de mercado,
designadamente:
a) Cooperativas;
b) Fundações;
c) Meios de produção comunitários geridos e possuídos por comunidades locais;
d) Meios de produção colectivamente geridos por trabalhadores;
e) Pessoas colectivas sem fins lucrativos que tenham por objecto a solidariedade
social;
f) Pessoas colectivas sem fins lucrativos que visem a promoção social, cultural,
ambiental, do desenvolvimento, da qualidade de vida e da democracia
participativa.
2. As entidades mencionadas no número anterior são consideradas integrantes da
economia social e solidária, independentemente do seu estatuto de reconhecimento
público e administrativo.
Cada uma destas opções, como está bom de ver, levanta problemas.
No caso do PSD, encontramos uma definição complexa composta por dois critérios: sector das (a) entidades que actuam de acordo com os princípios referidos no artigo 5º e (b) cuja missão vise o interesse geral económico ou social da Comunidade ou o interesse dos seus membros, utilizadores e beneficiários, com respeito pelo interesse geral da comunidade.
O primeiro problema é, pois, o elenco de princípios orientadores da actividades dos agentes da economia social. Sabendo estes, sabemos o que é a economia social, de acordo com o PSD. E aqui, curiosamente, o elenco previsto no artigo 5º é muito semelhante ao elenco previsto no artigo 4º da proposta do BE. E que princípios são estes em que PSD e BE acordam? Os típicos princípios da economia social, na linha da Carta de Princípio da CEP-CMAF - Conferência Permanente de Cooperativas, Mutualidades, Associações e Fundações. Note-se, por exemplo, na alínea g) do artigo 5º da proposta do PSD e na alínea e) do artigo 4º da proposta do BE, a utilização do termo "excedentes", típica do jargão socio-económico da economia social mas pouco comum como termo jurídico. Afinal, estamos a falar do lucro.
Mas os problemas persistem porque sabendo os princípios, temos depois que olhar para as entidades que o PSD e o BE propõem, pois só assim ficamos com a imagem completa. Aí encontramos novos problemas: as listas de ambas as propostas são pouco rigorosas. O PSD fala em fundações e organizações não governamentais, quando uma fundação pode ser uma organização não governamental (artigo 4º). O BE fala em cooperativas e fundações mas depois acrescenta pessoas colectivas sem fins lucrativos que tenham por objecto a solidariedade social (que podem ser fundações) e pessoas colectivas sem fins lucrativos que visem a promoção social, cultural, ambiental, do desenvolvimento, da qualidade de vida e da democracia participativa (que podem ser cooperativas e fundações). Ou seja, há muita confusão.
Quando se combinam os princípios com as entidades que os prosseguem encontramos mais dúvidas:
1. quando se fala em instituições cuja missão vise o interesse dos seus membros, com respeito pelo interesse geral da Comunidade (PSD, artigo 2º), estão a admitir-se as fundações de família?;
2. quando se fala em controlo democrático pelos seus membros (PSD, artigo 5º/c)), está a excluir-se as fundações, que não têm membros?;
3. quando se diz que as entidades referidas são consideradas integrantes da economia social e solidária, independentemente do seu estatuto de reconhecimento público e administrativo (BE, artigo 2º/2), está a esquecer-se que as fundações só existem após o reconhecimento administrativo?
Além disso as alíneas j) e l) do artigo 4º da proposta do BE são tautológicas, pois aquela protecção já é concedida pela Constituição. Por outro lado, as alíneas k) e são muito interessante, sobretudo de uma perspectiva de governo institucional.
Depois de termos conseguido perceber o que é a Economia Social (e Solidária) e quais as entidades que a integram, confirmamos que ambas as propostas se aproximam. Tanto o PSD como o BE sublinham a autonomia em face do Estado, a participação no Conselho Económico e Social, bem como em diversas instâncias de diálogo com Estado, a criação de um registo das entidades do sector.
Merece especial destaque as relações das entidades da Economia Social com o Estado (artigo 9º em ambas as propostas), bem como o interesse geral (PSD) e público (BE) que é atribuído ao desenvolvimento do Terceiro Sector (ambos no artigo 10º).
Como nota crítica final, gostaria de regressar à questão da delimitação do âmbito das propostas. É importante ponderar com muito cuidado o que se pretende com uma Lei de Bases da Economia Social. A este respeito, apesar de preferir o critério da proposta do PSD, ambas as propostas trazem coisas novas e interessantes - as empresas sociais, no caso do PSD, o subsector solidário no caso do BE - mas é preciso maior rigor na determinação do âmbito do sistema que se estará a criar. E isto leva-nos para a segunda nota crítica.
A grande utilidade de criar uma Lei de Bases da Economia Social - isto é, de criar um sistema - é ordenar esta área, em si mesma e na relação com o Estado.
Quanto à primeira dimensão é importante que todos os agentes, públicos, privados e do terceiro sector se consigam identificar claramente. Uma lei de bases da Economia Social pode ser a peça que falta num puzzle que já conta com a lei-quadro dos institutos públicos, diversas leis de bases, o código civil ou o código das sociedades comerciais. O conjunto permite-nos apreender, de um ponto de vista normativo, as várias entidades que desenvolvem a sua actividade no âmbito de uma determinada comunidade. Resulta claro que o Terceiro Sector é, dos três, aquele que permanece mais desconhecido e desordenado. E também aquele onde as regras de governo interno são mais desconhecidas.
Mas o que verdadeiramente é necessário é uma lei que regule o modo como o Estado se relaciona com a Economia Social. E, nesse aspecto, uma lei de bases do sector deve conter princípios fundamentais (alguns dos quais faltam a ambas as propostas apresentadas) para essa relação. Para além da subsidariedade, da cooperação, da supervisão e da regulação, deverá ficar claro o critério de financiamento público a entidades do sector da Economia Social. Este que é um aspecto para o qual a conjuntura atrai a nossa atenção é, contudo, um aspecto estrutural e ideológico. O Terceiro Sector, nos várias países, varia de configuração de acordo com a proveniência do seu principal financiamento. E, em consequência, muitos aspectos do seu regime devem adaptar-se a esse fenómeno, desde o regime fiscal até ao seu regime de organização e governo. Aliás, deveria ficar claro que o Estado apenas poderia financiar entidades do Terceiro Sector através de programas específicos, de revisão regular e referidos a métricas legalmente previstas, actualizadas de acordo com os interesses públicos. Veja-se por exemplo o balanço a que está agora a proceder o Office for Civil Society ao programa Compact britânico.
Quanto a este último aspecto e não obstante estarmos a falar de uma lei de bases, que deve sempre ser contida, ambas as propostas ficam aquém do que seria de esperar, pois remetem quase tudo para a lei ordinária.
Seguramente, a tipologia (flexível) do terceiro sector, os princípios basilares de governo institucional do sector (deixando margem para auto-regulação) e os critérios de financiamento e regulação pública deveriam estar mais bem desenvolvidos, configurando verdadeiras bases, para que tanto as entidades como os vários subsectores da Economia Social permitissem ao legislador fundamentos sólidos e claros para poder regulá-los. E, em alguns casos isso é bem preciso. Daqui a dois anos, por exemplo, o Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social comemorará quarenta anos... sem qualquer articulação com outros importantes diplomas legais, que não o Código Civil de 1966...