Civismo e boa vizinhança - um estudo de caso
Mudei-me para o meu actual apartamento há cerca de dois anos e meio. Decorriam obras no terreno contíguo, onde há uma moradia e um amplo logradouro. Ainda decorrem. Com períodos de interrupção, e incluindo alguns sábados e domingos, as obras têm vindo a decorrer durante o período em que concluí a minha tese de doutoramento, em que nasceu o meu primeiro filho e a minha filha (há 11 dias). Eu trabalho boa parte do dia em casa e nestes dois anos e meio nunca levantei qualquer problema com cheiros, barulho ou poeiras. Por um lado porque tinha mais que fazer e, por outro, minha tolerância às chatices é relativamente alta.
Há cerca de duas semanas, após quase um mês de interrupção de obras, o regresso das mesmas fez-se a um sábado. Não houve qualquer aviso prévio, de cortesia ou boa vizinhança. Nesse dia pedimos aos trabalhadores que avisassem os donos de obra para não darem instruções para que se trabalhasse aos fins de semana. A resposta foi um pouco rude. No dia seguinte - domingo - sucedeu o mesmo - pelo que avisámos que da próxima vez que acontecesse chamaríamos a polícia, sem qualquer aviso prévio. Esse dia foi hoje. As obras pararam.
É proibido, excepto por licença especial e excepcional, a realização de obras aos sábados e domingos. É bom que exista uma norma jurídica, claro, mas como sempre digo o Direito é o domínio do bom-senso. Se como Waldron diz o Direito é uma disciplina da Filosofia Moral, há-de ser aquela que rege os comportamentos mais sensatos. As pessoas, em princípio, trabalham toda a semana, é normal que queiram ter alguma paz e descanso ao fim de semana. Acresce que no meu caso específico, há meses que tenho obras públicas no meu bairro, aliás, neste momento à minha porta, pois a minha rua está a ser refeita. Além disso tenho agora um recém-nascido e um miúdo de dois anos, que, sem surpresas precisam de dormir. Como os pais.
Que tudo isto não passe pela cabeça das pessoas, que não ocupe algo nos seus espíritos a que pudéssemos chamar vizinhança, ou, pelo menos, civismo, é preocupante e diz mais do estado do país do que possa pensar-se. Pettit no seu magnífico livro sobre a República escreve - num capítulo intitulado Civilizing the Republic - que é impossível vivermos só pelas leis, que tem que existir outro tipo de resposta, mais básica, mais comezinha, regras sociais que estruturem a comunidade. O problema é que quando tais regras não existem ou não funcionem dá jeito que exista o Direito e que funcione. Hoje funcionou, quando chamei a polícia municipal. Que, aliás, me disse que os devia ter chamado logo de manhã.
O que mais me irrita é ter ficado irritado com este desfecho, apesar de ter recuperado a paz e os meus miúdos poderem dormir outra vez (e eu poder tentar): é que tudo isto se poderia ter evitado se houvesse civismo. Ou, simplesmente, boa vizinhança. Como, aliás, tenho com a maioria dos meus vizinhos.