Processo de ajustamento fundacional em curso
Quando em finais de 2011 foi conhecido a primeira proposta de lei do que viria a ser a Lei n.º 24/2012, de 9 de Julho, que alterou o Código Civil, no domínio fundacional, e aprovou em anexo a lei quadro das fundações, fiquei surpreendido: o legislador decidia ao arrepio de décadas de evolução recente e fazia-o de modo radical. Mesmo para quem defendia um regresso ao direito público aquela solução era excessiva.
Com efeito, após quase duas décadas de enamoramento do sector público com o direito privado, de que o melhor exemplo é o diploma legal, de 1999, que rege o sector empresarial do Estado, e que considera o direito privado o modelo, ao invés do que até então tinha sucedido (anteriormente as empresas públicas eram institutos públicos), a proposta de lei quadro das fundações fazia o percurso inverso, numa espécie de regresso em força ao direito público.
Agora todas as fundações criadas pelo Estado - Administração Central, Autarquias, Institutos Públicos - como fundações de direito privado passam, pura e simplesmente, a ser institutos públicos, na modalidade de fundações públicas. O radicalismo, que a História demonstra normalmente só servir como estádio transitório para um futuro mais sensato, tem, por isso, que ser entendido numa certa conjuntura, mais do que jurídica, política, e, sobretudo, tem que ser rapidamente pacificado. Aqui, como em quase tudo, a ponderação deve prevalecer. Se demorámos a perceber quão ilusória é a ideia de que o direito privado é a panaceia para o sector público, pensando-se que os seus princípios de gestão trariam uma eficácia redentora à Administração Pública, agora é necessário não cometermos o erro de pensar que podemos voltar ao direito público clássico, quando justamente foi de lá que fugimos.
A opção do legislador da lei quadro das fundações revela-se altamente criticável justamente por isso, por uma espécie de candura aparente, um acto de fé. Não se encontrando em Portugal (apenas com enorme imaginação jurídica) exemplos de fundações públicas na modalidade de institutos públicos resulta absolutamente bizarro que se queira, em 2012 e diante, que todas as fundações públicas de direito privado já existentes se transformem em institutos públicos sem que daí resultem danos de gestão.
Assim, em finais de 2011 o que imediatamente encontrei na proposta de lei quadro das fundações foi um enorme vazio. Faltava o óbvio: depois de décadas de fuga para o direito privado e do absurdo regresso a um direito público do qual se estava a fugir, a solução parece ser evidente: é preciso criar um direito público que responda às razões que levaram à fuga para o direito privado.
Que uma fundação criada por entes públicos, com dinheiro público e gerida sob responsabilidade pública deve ser submetida ao direito público, desde logo a mecanismos que assegurem o princípio democrático, quer no escrutínio das contas públicas, quer na responsabilidade pela prossecução do interesse público parece-me evidente. Mas o que também me parece evidente é que quando o interesse público é prosseguido através de modelos institucionais - como as fundações - que misturam, na procura de modelos de governo mais eficazes, público e privado, o regime jurídico deve ser um regime jurídico de compromisso entre o público e o privado (sem querer entrar em grandes detalhes técnicos, é exactamente por isso que na Alemanha ora se discute, há anos, um direito privado da Administração, ora, mais recentemente, um direito público dos particulares).
O legislador da lei quadro das fundações avançou com critérios para distinguir fundações públicas e privadas (cuja bondade não vou aqui analisar), mas ignorou por completo as situações mais comuns dos últimos anos e que, no pós crise de 2008 irão aumentar: os modelos institucionais de cooperação e colaboração entre público e privado. Não tenhamos medo dos nomes: parcerias público-privadas institucionais (que, aliás, existem há décadas no Terceiro Sector).
Ora, a ausência de um regime jurídico de direito público, que acautele e se destine às situações em que está em causa a prossecução do interesse público, mas num contexto de intensa participação institucional de privados, seja no modelo de governo, seja como partes interessadas, leva a mudanças drásticas que, podendo acautelar as falhas da aplicação do direito privado ao sector público, destroem também o que de bom se havia conseguido com esse modelo. Deita-se fora o bebé com a água do banho.
Era, pois, previsível que, uma vez iniciado o processo de adaptação de todas as fundações públicas de direito privado à sua nova condição de institutos públicos começassem a surgir as críticas. Aqui está uma, por exemplo, relativa à integração da FCCN na FCT.
É inevitável, se não quisermos insistir no impossível, que a lei quadro das fundações venha a ser alterada (ou complementada) para prever regimes adaptados a realidades diversas. Aliás, esse é o futuro inevitável de todo o Direito: adaptar-se a modelos de governo institucionais que mesclam e misturam público e privado. Como é que o legislador não percebeu isto é algo que me escapa. Se percebeu e não quis actuar, pior ainda.